Não se engane com os números estáveis da audiência do Sai de Baixo durante suas sete temporadas. Eles podem não significar que o público estivesse realmente ligado no que estava acontecendo no programa; afinal de contas, 95% das pessoas para quem você perguntar sobre o humorístico, vão dizer a seguinte frase: “O Sai de Baixo só era bom na primeira temporada”. As perguntas e dúvidas que essa afirmação provoca são muitas. Mas, é suficiente dizer que essa virou a mitologia do programa por conta de um nome. Ou melhor, dois: Claudia Jimenez... e Edileuza.
Quando Luiz Gustavo e Daniel Filho planejaram o programa, ainda no início dos anos 90, a ideia era uma espécie de repaginada no conceito da Família Trapo, um grande sucesso gravado ao vivo nos primórdios da nossa TV. O projeto foi recusado por outras emissoras – como o SBT – até voltar à mesa da Rede Globo, que procurava por algo que pudesse competir com os formatos popularescos apresentados por Sílvio Santos, que andava incomodando a soberania da vênus. O Sai de Baixo não era encarado com muito otimismo, sobretudo porque, de fato, os nomes de quase todos os envolvidos se tornaram gigantes depois dele e não antes.
Luiz Gustavo, o Vavá, era um ator veterano, tinha um rosto muito conhecido, mas não era um nome dos mais populares. Aracy Balabanian, a Cassandra, era considerada uma “atriz séria”, que mesmo que tivesse feito a icônica Dona Armênia, era uma atriz de “métodos”. Ela levou Cassandra a sério por vários episódios, até entender que a proposta era brincar em cena. Marisa Orth, a Magda, tinha feito muito sucesso em Rainha da Sucata, mas, até então, era uma atriz com um futuro promissor; ninguém conhecia o poder de seu timing de comédia. Miguel Falabella, o Caco, era sem dúvida um dos nomes mais populares do elenco. O que todos eles tinham em comum era o futuro: foi com o Sai de Baixo que eles foram “descobertos” como gênios do humor.
Claudia Jimenez, a Edileuza, era a dupla de Tom Cavalcante, o Ribamar. Os dois faziam o público se conectar imediatamente com o que se conhecia como comédia na época. Claudia era a Dona Cacilda e Tom era o João Canabrava; ambos oriundos da Escolinha do Professor Raimundo, um dos formatos mais bem-sucedidos da carreira de Chico Anísio. Já se esperava deles que fossem pilastras do Sai de Baixo, mas foi surpreendente ver como Marisa e Miguel também se tornaram imediatamente queridíssimos pela audiência.
É muito curioso notar, inclusive, que foram Claudia, Tom e Miguel os que entenderam de cara que o charme do programa estava na sua espontaneidade. Os três já improvisavam, já quebravam a quarta parede, já debochavam do texto, muito antes que todo o elenco compreendesse isso. Mas Claudia, especialmente, criou uma empregada irresistível, que debochava dos parentes falidos do patrão e dizia o texto com uma naturalidade e uma sagacidade impressionantes. Edileuza era “a vingança da classe C” e não só um alvo para piadas, mas também uma metralhadora giratória de suas próprias.
Saindo de Baixo
Em 1996, quando o programa estreou, o mundo era outro. Magda fazia graça sendo a gostosa burra e Edileusa sendo pobre e gorda; algo que deveria incomodar a todo mundo, mas que só incomodava Claudia Jimenez. Na época, as revistas especializadas em TV garantiam que havia tensão nos bastidores do fenômeno. Em cena, com atenção, é possível notar o próprio elenco criticando o texto (no episódio de Natal e de Ano Novo daquele 1996 isso fica gritante). Irritada com a insistência em ver Edileuza sendo reduzida a seu peso e depois de constantes atritos com os roteiristas, Claudia abandonou o programa, numa decisão chocante, que fez com o que Sai de Baixo se marcasse definitivamente na mitologia da TV brasileira.
Reencontrar o ritmo foi difícil... Ilana Kaplan (hoje em dia um sucesso na internet) assumiu a vaga de empregada por 4 episódios. A abordagem de Ilana foi apresentar uma personagem quase cartunesca, cheia de um humor sofisticado que não se comunicava bem com o restante do elenco. Daniel Filho voltou atrás, afirmou que aquele havia sido um erro de casting e Ilana foi substituída por Márcia Cabrita, essa sim muito mais disposta ao caos criativo do formato. A empregada da casa mudaria mais uma vez, trazendo Claudia Rodrigues para o elenco no quinto ano. Tanto Marcia quanto Cláudia se integraram muito bem no programa. O cargo, contudo, se tornaria um desses exemplos de coincidências trágicas (das quatro atrizes que fizeram as empregadas, duas morreram e uma luta contra a esclerose múltipla há anos).
Apesar desses entraves no elenco (a saída de Tom Cavalcante no meio do quarto ano também foi conturbada), o Sai de Baixo tinha uma vida saudável. Sua audiência era estável, ele chegou a dar 50 pontos no episódio exibido ao vivo e a dinâmica entre os personagens tinha encontrado sua identidade definitiva durante o segundo ano. Foi somente durante e depois da segunda temporada que se estabeleceram os traços irresistíveis do formato.
Naquele ano de 1996, o único com Edileuza, ainda não era possível ver Aracy se divertindo em cena com Falabella – Cassandra ainda nem era a “cascacu”. Também não era possível ver Tom Cavalcante menos obrigado a fazer imitações famosas e mais dedicado a tipos originais e piadas com cultura pop (impossível esquecer o dia em que ele entra em cena cantando “Coração com Buraquinhos” e desconcentra Marisa Orth). A ojeriza de Caco Antibes à pobreza ainda não era hilária. Os episódios ainda não eram interrompidos pelo elenco – à revelia da direção – para que eles brincassem de “fazer novela”, para que imitassem o programa de Márcia Goldschmidt ou simplesmente para contarem uma história de bastidores. Em 1996, o Sai de Baixo era um fenômeno por ser a grande novidade da comédia. Mas, ele ainda tinha os elementos que o fizeram ser realmente bom.
Então... por que as pessoas ainda insistem em dizer que somente o primeiro ano era legal? É provável que embora as TVs tenham se mantido ligadas após o fim do Fantástico, a maioria do público tenha se recusado a prestar atenção de verdade ao que o Sai de Baixo tinha a oferecer depois que Claudia Jimenez saiu. De fato, a “falta de graça” foi um problema momentâneo pelo qual o programa passou diversas vezes em seus mais de 240 episódios. Mas Claudia era tão forte em cena que sozinha conseguiu inserir no histórico do Sai de Baixo esse traço mitológico inquebrável: mesmo tendo feito tantos personagens e alguns deles por muito mais tempo, era a imagem de Edileuza que estampava posts quando sua intérprete partiu.
O Sai de Baixo ficou no ar por 7 anos, Edileuza estava nele somente no primeiro; e mesmo assim, a personagem “sequestrou” do formato uma parte do seu direito de seguir em frente. Por maldade? Claro que não. Talvez isso tenha acontecido por ser ela uma personagem boa demais para não estar ali, para não existir por mais tempo, magoando o público ao ponto de torná-lo falsamente tolerante ao que viria em seguida. Ao mesmo tempo, aquela era uma Edileuza refém de seu tempo, incapaz de existir nos mesmos termos se fosse criada agora. O humor do Sai de Baixo é datado, politicamente incorreto, controverso, errado... E como quase tudo que os anos 90 produziram, imperdível.
Contudo, ele precisa ser apenas um olhar retrospectivo, um sopro de nostalgia problematizada. Não dá para celebrar o machismo, a homofobia, o racismo, a gordofobia... todos esses estruturalismos cômicos que faziam a vida dos roteiristas daquele tempo muito mais fáceis. O Sai de Baixo foi melhor do que lhe costuma ser creditado, mas ele também era um programa “maldito”. Claudia estava certa antes de todos nós; Edileuzas não podem mais existir no mundo de hoje... o que acaba sendo um alívio e também ajuda a personagem nessa curiosa missão de ser mito.
Está definido que...
... Marisa Orth construiu aquela que talvez seja uma das personagens mais bem construídas da história da comédia brasileira. Magda funcionava nos episódios como uma “cola” que ligava os pontos do enredo e era ela, sempre, quem se comprometia com mais afinco a manter aquele universo de pé (considerando que Falabella e Tom sempre trabalhavam para destruí-lo). Marisa conseguia fazer esse trabalho de organização sem crítica, sem perder as rédeas de Magda, sem excesso de seriedade. Apesar de ter colocado Magda nos primeiros lugares de qualquer lista de personagens cômicas mais importantes da nossa história, Marisa não teve o reconhecimento que merecia da classe artística e da crítica especializada. A construção de Magda era irretocável e isso não é pouco diante de um elenco tão despreocupado com tudo.
Está a definir...
... o que representa, de fato, ter insistido em trazer a história da família de volta para o cinema, em 2019. Depois de tantas versões do roteiro e tantos ajustes para ser possível levar a produção adiante, o filme saiu confuso, pobre, incompetente e pouco lisonjeiro. É notório que o filme só precisava ser feito, não importava como, o que custou aos fãs uma última aparição dos personagens num contexto absolutamente errado. Se não fosse por Magda – Marisa, sempre ela – ele seria inteiro um desperdício.
Mesmo assim, vale mencionar que a ideia de trazer de volta o Caquinho (filho de Magda e Caco) foi interessante. Um dos problemas do Sai de Baixo foi a maneira como ele pouco se preocupava com continuidade. Edileuza saiu e foi como se ela nunca tivesse existido. Eles repetiram essa “estratégia” com Neide e com Ribamar. Contudo, depois de mostrar Magda grávida por meses, revelar um bebê animatrônico bizarro por mais alguns e, enfim, trazer o ótimo Lucas Hornos para a versão real do menino, o programa precisou fingir novamente que o personagem não existia após o Juizado de Menores decidir pela saída do ator mirim por considerar o conteúdo inadequado para sua idade. De todas as vezes em que algo foi apagado da mitologia da série, essa talvez tenha sido a pior.
O Sai de Baixo tem as temporadas 1, 4, 5, 6 e 7 disponíveis no Globoplay. Curiosamente, as temporadas 2 e 3 (sendo a 3 uma das melhores) não estão disponíveis. Os quatro episódios especiais produzidos pelo Canal Viva também não estão lá, mas são ótimos.
Sobre a coluna Ovo Mexido
Todo mês, a coluna fala sobre tudo que diz respeito à televisão – da aberta ao streaming – com novelas, séries e realities; um espaço para “prazeres culpados" sem culpa nenhuma.
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