Todas As Flores é um sucesso... que corre depressa demais

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Séries e TV

Todas As Flores é um sucesso... que corre depressa demais

João Emanuel Carneiro e sua fascinação pela vilania feminina encontram o desequilíbrio criativo causado pela falta de tempo

Omelete
7 min de leitura
28.11.2022, às 09H26.

É uma realidade, já podemos dizer: Todas As Flores, de João Emanuel Carneiro, considerada a primeira novela da era do streaming, é um sucesso. Talvez só não seja um sucesso maior porque a maioria do público – que acompanha a TV aberta – pode nem saber que os capítulos estão disponíveis semanalmente no Globoplay. Na internet, no Twitter, nas rodas de conversa virtuais, a novela fulgura entre as mais admiradas dos últimos anos. E o argumento mais comum para defendê-la é absolutamente legítimo: estamos diante de um folhetim como há muito tempo não se via na TV.

No bloco de capítulos liberados há duas semanas (do 25 ao 30), a novela alcançou seu primeiro apogeu, com uma reviravolta que geralmente costuma ser vista nas produções da TV aberta lá pelo capítulo 100. Era uma reviravolta grandiosa, mas apoiada naquilo que o fã de teledramaturgia conhece muito bem: a vilã Vanessa (Letícia Colin) precisa se livrar da mocinha Maíra (Sophie Charlotte); então, ela arma um plano com a mãe Zoé (Regina Casé) e enrola o mocinho Rafael (Humberto Carrão). Mais “novelesco” que isso é impossível... Chegamos a nos perguntar: por quê dá tão certo se é tão recorrente?

Uma olhada atenta em Todas As Flores nos dá um norte para essa análise. A novela já é uma grande candidata a ser o segundo grande êxito de João depois de Avenida Brasil; essa sim uma espécie de fenômeno só visto antes por quem presenciou outros clássicos como Vale Tudo e A Senhora do Destino. Lá em Avenida Brasil os maiores registros se perpetuaram em Nina (Debora Falabella), Carminha (Adriana Esteves), Lucinda (Vera Holtz), Monalisa (Heloísa Perissé) e por aí vai... Agora, em Todas As Flores, esses registros estão em Vanessa, Maíra, Zoé e ainda em Mauritânia (Thalita Carauta) - uma personagem que já está na lista de grandes acertos da história da nossa querida telinha. Apesar dos personagens masculinos fortes ainda existirem, quem move tramas e sacode destinos nas novelas de maior sucesso são elas, as mulheres.

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Do ponto de vista da dramaturgia, para haver história precisa haver conflito e quem ata o nó dramático são os vilões. Sem eles, nenhuma história vai para frente. São os vilões que apresentam o “problema”, que geralmente está em superar alguém ou alguma coisa. As duas grandes tramas de João Emanuel Carneiro têm um pequeno diferencial: em Avenida Brasil, se Nina não tivesse aparecido Carminha teria passado toda sua vida fazendo aquela família feliz, se aproveitando da reputação e do sucesso que construiu. Ela não queria nada além do que já tinha. Ela só queria manter o mundo que estabeleceu. Já em Todas As Flores, as vilãs precisaram da mocinha para que uma delas sobrevivesse, e foram lá, trouxeram o problema e perderam o controle dele. As vilãs de João Emanuel só querem rotina.

É difícil puxar da memória atores que viveram grandes vilões. Toda novela tem alguns, que fazem sucesso, chamam a atenção da crítica, lançam bordões... Mas, nada se compara ao que acontece na nossa cabeça quando nos perguntam quem foram as vilãs que mais se marcaram na TV. Carminha, Odete Roitman (Beatriz Segal), Raquel (Glória Pires), Flora (Patrícia Pillar), Nazaré (Renata Sorrah), Branca Letícia (Suzana Vieira), Perpétua (Joana Fomm), Laura (Claudia Abreu)... a lista é longa e maravilhosa. O fascínio da dramaturgia mundial pela mulher má é tão alegórico quanto sócio-político.

O mundo de Todas As Flores é dominado por personagens femininas, que correm contra o tempo apertado que o autor da novela tem nas mãos. Quando ia ao ar na TV aberta, a trama tinha mais de 150 capítulos; agora, no streaming, terá apenas 80. Isso acelera a narrativa, adianta eventos, embates, aumenta a necessidade de elipses e cria um inevitável campo de riscos, não só para erros de continuidade como também para questões de envolvimento. Até agora foram só 30 capítulos e a novela já está próxima da metade, com tantos pontos de tensão que sobra pouco tempo para absorver alguns deles.

Dizer isso pode fazer parecer que “nunca estamos satisfeitos”... demorar demais é um problema, ir muito rápido também... De fato, para toda obra artística que se revela um sucesso há um equilíbrio entre extremos. Todas As Flores é uma novela que tem pressa de se contar quando olha para seu enredo central, mas que dá passos de tartaruga em seus núcleos “cômicos” paralelos – porque, é claro, eles não têm mesmo lugar nenhum para ir. João Emanuel sempre fez isso, sempre fará e é melhor nos acostumarmos com o homem adúltero que “tem um coração bom”. É assim que ele busca esse equilíbrio.

Quanto mais correm, mais os capítulos evidenciam esse “fetiche” pelos limítrofes femininos. Mauritânia faz sucesso muito rápido, Patsy e ela ficam amigas muito rápido, Vanessa fica muito má muito rápido, Zoé fica muito hesitante muito rápido, Judite desconfia de tudo sem critério, Maíra luta pela liberdade em 15 minutos... as mulheres que escrevem os conflitos estão ali só cumprindo suas funções, mas não demora muito para que a ausência de calmarias torne tudo excessivamente eloquente. Os personagens homens estão no mesmo lugar desde que a novela começou, enquanto as mulheres já foram a mais extremos do que o público teve chance de processar. É esse raciocínio que provoca – por exemplo – a escala de loucura que atinge 9 de 10 vilãs da nossa teledramaturgia.

Os erros nos roteiros, enfim, começam a aparecer; e com tudo acontecendo tão imediatamente, os riscos de vê-los tropeçando um no outro aumentam. Contudo, com tanto carisma envolvido, é mais fácil passar por cima de alguns deles. Essa boa vontade está aí, circulando pelas redes, mas, cada vez mais disposta a deixar o incômodo assumir a direção, caso essa escala vertiginosa de acontecimentos não dê uma pequena trégua. João Emanuel tem seu repertório (difícil não notar que Maíra foi mandada para a Fazenda para ser explorada e depois buscar vingança, da mesma forma que Nina foi mandada para o lixão em Avenida Brasil), sabe usá-lo para construir inesquecíveis figuras femininas. Mas, Segundo Sol já havia lhe mostrado que carisma nenhum suporta falta de lógica por muito tempo.

Assim, Todas As Flores entrou na sua zona crítica. O último bloco de capítulos antes do hiato vai determinar se as constantes reviravoltas e a ostensiva crescente de extremos entre as personagens femininas serão positivas o suficiente para tornar a longa espera uma espera pautada em boas expectativas. Torço para que sim, ainda que haja algo de ambíguo em sentir prazer vendo mulheres glamorosas cometendo atos de pura maldade, encontrando humor no esnobismo e na humilhação, torcendo para que elas se enfrentem em loopings de apego afetivo por galãs monocórdios.

Está definido...

... que mesmo tendo chegado ao apogeu com uma rapidez literalmente inacreditável, Mauritânia já está no ranking de melhores personagens da história das telenovelas. A parceria entre Thalita e Suzy Rego se revelou um dos pontos altos da novela; assim como a rivalidade com o personagem de Cássio Gabus Mendes, que começou a acontecer de verdade ao se deparar com ela (elas, as mulheres, sempre atando os nós). É esquisitíssima a maneira como Mauritânia consegue aprovação para tudo dentro de uma empresa com anos de mercado. Mas, é aquela história... o carisma perdoa QUASE tudo.

Está a definir...

... qual será o nível de paciência que nos restará para lidar com o núcleo de Douglas Silva na novela. João Emanuel tem mania de colocar sempre um adúltero “boa praça” para viver a espiral de cenas iguais em todos os capítulos, quase como se repetisse um esquete a cada semana. Apesar dos atores envolvidos estarem todos cumprindo com competência seus papéis, esse enredo do homem enganando várias mulheres com um pagode-forró-sertanejo-funk de fundo precisa ser superado. Numa novela de TV aberta ele até faz sentido por questões de alcance e de preenchimento de capítulos. Mas, numa novela em streaming, com apenas 80 capítulos, ele soa totalmente desnecessário. E se tudo isso pode ser perdoado, o tratamento dado à condição do priapismo, dentro desses termos jocosos, é lamentável.

Sobre a coluna Ovo Mexido 

Todo mês, a coluna fala sobre tudo que diz respeito à televisão – da aberta ao streaming – com novelas, séries e realities; um espaço para “prazeres culpados" sem culpa nenhuma. 

*Henrique Haddefinir é colaborador do Omelete desde 2013, também é roteirista, dramaturgo, escritor e mestrando em teoria e crítica

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