A pauta é até velha, mas pode soar inédita para boa parte dos brasileiros. Nas últimas semanas, o Senado tem levantado debates sobre um tema que envolve tanto a cultura pop, quanto o público consumidor de plataformas de vídeo sob demanda. Políticos e representantes de produtoras de cinema, da pasta do Audiovisual do Ministério da Cultura e de marcas como Netflix estão examinando a regulamentação do streaming no país.
À primeira vista, a discussão pode parecer muito complexa ou, até, um simples pretexto para aumentar o valor das assinaturas — mas calma! Uma eventual regulamentação não pretende fazer com que os brasileiros gastem mais dinheiro para assistir a séries como Cangaço Novo (Prime Video) ou acompanhar os casais de Casamento às Cegas (Netflix). Na verdade, a proposta está intimamente ligada à ideia de garantir a continuidade e a exibição das produções brasileiras. Isso porque regulamentar o streaming, em termos simples, significa estabelecer uma política interna de proteção para as produções nacionais disponíveis nestes serviços e oferecer condições mais favoráveis aos profissionais do setor, como roteiristas, produtores e demais envolvidos.
Para entender como tudo isso está conectado, é preciso lembrar como se deu o boom destas plataformas. Entre 2011 e 2014, quando os streamings começaram a ganhar popularidade global, era comum encontrar um catálogo repleto de produções hollywoodianas ao fazer login. Séries como House of Cards e Orange is the New Black atraíam assinantes para os serviços, assim como uma variedade de outros títulos adquiridos. Os Estados Unidos perceberam rapidamente a oportunidade e investiram vigorosamente na criação de conteúdo original. Isso não apenas impulsionou sua própria produção audiovisual, mas também lhes conferiu destaque no mercado devido ao seu modelo de distribuição inovador. No entanto, essa dinâmica não se repetiu nas outras regiões do mundo, como Europa, Ásia e América Latina.
Pelo menos é o que percebeu Marina Rodrigues, produtora-executiva dedicada a políticas públicas para o audiovisual. Para ela, quando as plataformas de streaming começaram a investir em conteúdo original fora dos Estados Unidos, os países em questão tiveram que adotar o modelo americano, muito por causa da ausência de regulamentação em seus próprios mercados. Sob esse modelo, os criadores desses países ficavam vulneráveis e, muitas vezes, perdiam os direitos de suas obras para grandes entidades, como o Prime Video ou a HBO Max. "Instituiu-se uma convenção não escrita, segundo a qual o produtor [e não o criador] da obra detém seus direitos. Dessa forma, se um streaming optasse por não renovar uma série, mesmo que o roteirista acreditasse no potencial para mais episódios, ele perderia o direito de oferecê-la a outras plataformas ou emissoras de televisão", pontuou Rodrigues.
Reconhecendo a importância desse aspecto, várias nações começaram a desenvolver suas próprias leis para regulamentar o streaming. Em 2018, o Parlamento da União Europeia estipulou que 30% do conteúdo transmitido por serviços de streaming, como Disney+, Apple TV+ e outros, deveria ser produzido localmente. Essa regulamentação concedeu um prazo de 21 meses para que os países da região e seus vizinhos incorporassem essa exigência em suas leis e regulamentações de mídia.
No Brasil, a primeira sementinha sobre a pauta foi plantada em 2016, pelas operadoras de TV por assinatura. Após perderem mais de 1 milhão de assinantes desde a popularização da Netflix — segundo o que foi apurado à época pelo colunista Ricardo Feltrin, no UOL —, as programadoras pagas exigiram um marco regulatório da Agência Nacional do Cinema (Ancine) com obrigações e o pagamento de uma taxa – conhecida como Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional, (a Condecine) – para cada título disponibilizado pela plataforma. Vale notar que as próprias operadoras de TV por assinatura também passaram por um processo similar, que envolveu a cota de conteúdo nacional obrigatórios nos canais e pagamentos da Condecine.
Pouco tempo depois, em 2018, o senador Humberto Costa (PT/PE) apresentou pela primeira vez o PL 1.994/2023 com esse propósito. Baseado em uma sugestão do deputado Paulo Teixeira (PT/SP), o plano procura estabelecer cotas mínimas de conteúdo nacional nas plataformas, regras para a fiscalização dos serviços e alíquotas de pagamento de tributos de acordo com o faturamento das companhias. O projeto ainda não foi aprovado, mas segue em pauta até hoje no Senado – quase 5 anos depois.
Na última reunião do plenário, em setembro deste ano, Mariana Polidorio, diretora de Políticas Públicas da Netflix, ressaltou o interesse da plataforma de regulamentar o streaming, “desde que a medida contribua para o nosso sistema de uma maneira equilibrada”. Ela, no entanto, contestou o posicionamento sobre a cota de catálogo – uma política já instituída em outros países da Europa e um dos principais demandas dos agentes que desejam a regulamentação do streaming no Brasil. "Estabelecer uma cota mínima poderia acabar estimulando uma pulverização no investimento em um número maior de obras, mas não necessariamente com uma qualidade ou um padrão que entendemos ser do interesse do cliente consumidor", pontuou. Segundo a diretora, esta medida poderia dificultar o lançamento de obras estrangeiras no país.
Demais empresas de streaming acrescentam que a Ancine, antes de pensar em regular o segmento, deveria investir em novas políticas de crédito para o cinema nacional, bem como isenções fiscais para as produções – como acontece nos Estados Unidos. Existe também uma preocupação por parte das companhias que a criação de regras e cobrança de taxas poderia atrasar a maturação do streaming no Brasil.
Segundo dados do Panorama do Mercado de Vídeo por Demanda, realizado pela Ancine em 2022, o Brasil já é referência quando o assunto é streaming. Atualmente, nosso país tem 59 plataformas na ativa, mais que o México e a Argentina – outros mercados tidos como referência em termos de produção e consumo audiovisual na América Latina. Não bastasse isso, somente no segundo trimestre de 2023, toda a região foi capaz de faturar R$ 5,38 bilhões para a Netflix – de acordo com os dados divulgados durante a reunião mais recente de resultados da companhia.
O que os nomes da pasta Audiovisual do Governo, produtoras e realizadores questionam, no entanto, é o porquê de não existir um repasse de parte deste valor massivo ao setor audiovisual brasileiro, que, como comprovado com os dados acima, é responsável por ajudar a trazer bilhões à companhia. Sob as atuais propostas de regulamentação, as plataformas de streaming seriam obrigadas a pagar um tributo pela exploração comercial de obras audiovisuais. As empresas também seriam exigidas a investir uma parte de seu faturamento bruto no licenciamento e produção de conteúdo brasileiro. Em outras palavras, os tributos pagos teriam um destino específico, impulsionando a produção e promovendo a reestruturação do cenário audiovisual brasileiro.
Apesar da complexidade do assunto e das diferentes propostas, existe um consenso sobre a necessidade de estabelecer uma legislação específica para o setor de streaming no Brasil. Novas discussões sobre a regulamentação devem acontecer dentro das próximas semanas no Senado — e todos os desdobramentos deste debate você poderá encontrar no Omelete.