Evangelion é considerado um dos animes mais influentes dos anos 90. Mas essa nomeação de Shinji Ikari como o representante da comunidade otaku daquela década não ofusca o brilho de uma outra série que chegou de mansinho, ali em 1998. Esse foi o ano de nascimento de Cowboy Bebop, um anime tão importante a ponto de ser reverenciado 20 anos após sua exibição original. Mas, afinal, o que essa série tem de tão incrível assim?
Dirigido por Shinichiro Watanabe, o anime mostra o Sistema Solar afetado por um acidente que tornou a Terra inabitável. Os humanos precisaram ocupar novos planetas, graças à facilidade de se viajar pelo espaço, e a criminalidade chegou a um nível alarmante. Para combater essa ameaça, o governo voltou à regra do velho oeste americano: oferece um valor pela cabeça de criminosos e os caçadores de recompensa viajam pelo universo tentando capturá-los.
Cowboy Bebop tem quatro personagens principais, unidos pelo destino pouco favorável. O protagonista Spike tem pendências com um amor do passado; o ex-policial Jet ainda sofre os males de ter abandonado a instituição; a trambiqueira profissional Faye Valentine tenta lembrar de sua juventude e a hacker Ed quer fugir do abandono. Esses quatro desajustados passam a conviver como uma “família informal”, unidos basicamente pela conveniência e fome.
Como se vê, Cowboy Bebop tem uma premissa muito simples e boa parte de seus episódios se encerram neles mesmos. Geralmente vemos esses quatro protagonistas passando fome, indo atrás de alguma cabeça a prêmio e se enfiando em histórias bem complicadas, normalmente terminando com uma luta entre naves. Às vezes tudo dá certo, outras vezes sobra dinheiro para comprar apenas um macarrão instantâneo. O maior atrativo do anime, no entanto, é na forma como tudo é contado ao público.
O "bebop" no título não está ali apenas pela sonoridade. Esse é o nome dado a uma corrente de jazz, ritmo conhecido principalmente pela sua velocidade e improviso, e tem tudo a ver com a história. Durante as cenas de ação em que Spike e Faye precisam lidar com situações inesperadas com criatividade, tudo ganha uma trilha sonora de jazz composta especialmente para Cowboy Bebop, trabalho da compositora Yoko Kanno. Enquanto as naves dão piruetas no espaço se desviando de tiros inimigos, os instrumentos do jazz ditam o movimento dos personagens como se estivéssemos assistindo a uma grande orquestra em que o músicos são substituídos por caçadores de recompensa em cenas de ação.
Para combinar com a trilha sonora incrível, a animação não deixa a desejar e oferece uma variedade de estilos. Há o episódio em que eles vão atrás de um traficante de cogumelos, e a trilha sonora e a animação se unem para fazer uma trama mais tresloucada. Jjá quando Spike precisa lutar contra um “clone” do Pinguim do Batman, o episódio ganha mais sombras, se assemelhando também ao clássico desenho do Homem-Morcego dos anos 90. A animação ficou nas mãos do estúdio Sunrise, que aproveitou toda sua experiência com a série Gundam para criar batalhas de naves sensacionais.
O drama de cada personagens aparece como um quebra-cabeça que o público precisa montar no decorrer dos episódios. As tramas são desenvolvidas aos poucos em meio à história do "bandido do dia", até chegar nos episódios finais que contam com a resolução do problema de Spike. Nada é tão fácil assim acompanhar, já os próprios personagens não parecem querer compartilhar seus dramas com o público ou os colegas de cena. Mas quando temos acesso a um novo pedaço do passado, é possível compreender o todo.
No entanto, todas essas qualidades não foram o bastante para garantir o sucesso de cara de Cowboy Bebop no Japão. Na verdade, o anime estreou em 1998 na TV Tokyo, mas foi tirado do ar três meses depois e só teve uma exibição completa no ano seguinte pelo canal WOWOW. Poucos anos depois, começou a ser exportado e fez um baita sucesso nos EUA, até por ter uma atmosfera mais "ocidental" do que boa parte dos animes da época. Cowboy Bebop é considerado um clássico por lá, servindo de referência para animações até hoje (a abertura já foi parodiada em O Incrível Mundo de Gumball, do Cartoon Network, e há uma “cameo” de um personagem vestido de Spike em Apenas um Show). Com o passar das décadas, Cowboy Bebop ganhou vários relançamentos em home-video e sempre se falava de um live-action americano, sonho que será realizado pela Netflix.
Já no Brasil o anime não teve tanta sorte assim. Ele foi adquirido pelo Locomotion, um canal com pouco alcance no país, e não teve tanto cuidado como Evangelion. Enquanto o último teve uma dublagem em português encomendada pelo canal, Cowboy Bebop chegou numa fase em que a emissora só colocava uma legenda com vários erros. Aliás, era até bem comum a legenda desaparecer, deixando o público sem entender diálogos em momentos decisivos. Todo o sucesso do anime no Brasil se deu por meios informais, até que em 2015 ele passou a ser exibido pelo canal iSat (cuja disponibilidade é muito limitada). Com a estreia do live-action pela Netflix, fica a torcida para o anime também ser disponibilizado em um meio grande para que o público brasileiro tenha a oportunidade de conferir um material tão excelente.
Além da série de 26 episódios, Cowboy Bebop ganhou um longa-metragem em 2001 que acontece cronologicamente entre os episódios 22 e 23 da série original, mas a história é acessível a ponto de um leigo assistir e gostar. Nele, Spike e seus colegas estão na cidade de Alba e precisam resolver um atentado terrorista que acontecerá no Dia das Bruxas. O filme chegou a ser lançado oficialmente no Brasil em alguns cinemas no ano de 2003, e no ano seguinte chegou ao mercado de home-video com uma dublagem inédita em português, com direito a Guilherme Briggs como Spike.
É até difícil falar das qualidades de Cowboy Bebop em um texto. A série traz uma combinação única de personagens interessantes, animação bonita e música incrível, itens que aparecem em obras posteriores do diretor, como Samurai Champloo. Cowboy Bebop talvez seja uma boa alternativa para alguém que deseja entrar no universo dos desenhos japoneses, mas se sente intimidado com o gênero. Esta série traz todos os absurdos esperados de um anime, mas de uma forma muito mais ocidental e “palatável” para alguém não iniciado, o que talvez explique seu sucesso no ocidente. A melhor forma pode ser experimentando um episódio, como quem não quer nada, e se deixar envolver por esses adoráveis caçadores de recompensa que batalham em ritmo de jazz.