Depois de um dia inteiro de reconhecimento de sua nova vizinhança, numa base do Exército instalada no Vêneto, Fraser (Jack Dylan Glazer) já está bem embriagado para um garoto de 14 anos e sentencia, com pesar, que “americanos não podem ser felizes fora dos EUA”. “Mas aqui na base é os EUA”, responde sua madrasta (Alice Braga), enquanto os dois atravessam um quintal que imita os subúrbios americanos na costa italiana.
Nesse momento We Are Who We Are - que no primeiro episódio não aposta tanto no texto “inteligente” e se deixa guiar mais pela experiência sensorial - já define não apenas seus temas mas também as dinâmicas que vai explorar, entre o mundo dos adultos e dos adolescentes. Se toda história de formação juvenil é uma história de deslocamento, então a minissérie de Luca Guadagnino para a HBO exacerba isso: pais e filhos habitam mundos distintos, ambos nesse não-lugar deslocado que é a base em Chioggia; Alice faz a não-americana no papel da não-esposa, e Fraser, o novaiorquino fashionista e hiperativo que fala sozinho, é o deslocamento em pessoa.
Pelo próprio título, já fica sugerido que ao longo dos oito episódios a minissérie vai acusar a ironia dessa assertiva bem americana, “nós somos quem nós somos”. Pois de forma quase esquizofrênica, logo de cara, o episódio de estreia adota um ritmo de flâneur sob drogas e várias quebras de montagem para mostrar que “quem somos” é um assunto aqui absolutamente aberto a investigação. Tendo a orientação sexual fluida de Fraser como bússola, vamos coletando pedaços de acontecimentos, com cenas que começam na metade ou terminam antes da conclusão. É o fluxo que importa, empurrado pelas escolhas de canções (usadas no episódio tanto como música diegética quanto incidental, outra escolha definida pela fluidez).
Em alguns momentos, Guadagnino pesa a mão na câmera nervosa, como no zigue-zague da cena de Fraser com sua mãe (Chloë Sevigny) na cozinha, quando fica na boca aquele gosto metálico do artifício de fotografia usado para compensar a dramaturgia escassa. No geral, porém, a sobrecarga sensorial tem bons resultados - talvez porque o espectador esteja entrando nesse mundo como Fraser, encantado, sem saber direito o que esperar, o seu olhar ainda acostumando-se à luz atordoante do Adriático. Não há uma trama delineada em curso, com relações de causa e efeito amarradas, além da questão dos deslocamentos, então basicamente tudo está aberto aos sentidos.
Um jeito possível de já resumir We Are Who We Are é a incontornável comparação com Me Chame pelo Seu Nome, o filme que colocou Guadagnino no radar de Hollywood. A posição de Fraser nesse primeiro episódio seria como se Timothée Chalamet estivesse chegando para as suas primeiríssimas férias na Europa em um eventual prelúdio de CMBYN, e o que o desnorteia não é apenas o despertar sexual no calor, especificamente, mas o despertar para a vida no mundo mesmo, que até então ele já acreditava ter entendido e exaurido por completo.
Na época de CMBYN, Guadagnino adotou para si a comparação que se fez entre o seu filme e A Nossos Amores (1983), de Maurice Pialat. Pois durante a divulgação de We Are Who We Are, Guadagnino voltou a citar Pialat como uma inspiração, e inclusive batiza o cinema da base militar com o nome do cineasta francês, numa versão italianada, “Pialati”.
Para o público da HBO, essa referência talvez seja tão deslocada quanto ver um high school americano no Norte da Itália, e no fundo Guadagnino a usa para dar um lustro “de arte” à minissérie (que originalmente estrearia no Festival de Cannes neste ano). Na prática, embora se fale de deslocamento, o terreno é mais familiar, pois no fim das contas a proposta da minissérie parte da boa e velha crônica da vida de classe média americana (que afinal é tradicionalmente dobrada, invertida e estressada em séries da HBO como A Sete Palmos, Amor Imenso e Big Little Lies), com suas convenções de hierarquia, agora sob o olhar europeizado de Guadagnino, com sabor de licor e suor.