Quando a Amazon anunciou em janeiro de 2015 o piloto de The Man in the High Castle, a notícia foi recebida pela crítica especializada com certo ceticismo. Afinal de contas, o desafio de adaptar para a televisão a clássica distopia política de Philip K.Dick publicada mais de quarenta anos antes não seria uma tarefa simples. Ambientado em 1962, a obra apresenta um cenário sombrio, com a Segunda Guerra Mundial vencida pelo Eixo. Ao escrever a história do pós-guerra, recriada a partir da derrota das forças aliadas, o livro apresentava o mundo, e particularmente os Estados Unidos, gravitando sob a influência de duas potências emergentes: Alemanha e Japão; uma situação semelhante à Guerra Fria travada no mundo real.
Na produção da Amazon, vemos personagens divididos entre Nova York, dominada pelo Terceiro Reich, São Francisco, sob influência do Japão, e uma zona neutra. A história envolve conspirações entre os dois vencedores, agentes duplos infiltrados em organizações, e a luta da resistência para coletar e enviar cópias de um filme que mostra uma versão bem diferente do fim da guerra, películas produzidas por um misterioso homem do castelo alto. O estúdio venceu o desafio e, após uma elogiada primeira temporada, emplacou uma segunda - que chega agora ao serviço de streaming no Brasil - e já garantiu uma terceira. Com atuações seguras, conceito forte e produção impecável, The Man in The High Castle se transformou em um dos carros-chefe da Amazon e é uma das séries imperdíveis deste ano.
A tarefa de adaptar a densa narrativa de Philip K Dick em uma série de 10 episódios intimidou até Ridley Scott, o responsável pela adaptação mais famosa de uma obra do autor norte-americano. “Durante as filmagens de Blade Runner, chamei Philip para lhe mostrar o que pensei para a cena de abertura, e ele ficou muito impressionado. Ele disse: ‘Você já leu O Homem do Castelo Alto? Isso tudo parece um derivado dele’. Com isso, resolvi ler o livro. Quando a Amazon me chamou, percebi que seria uma coisa bem desafiadora. Existem 19 histórias nas primeiras 20 páginas do livro. Como você consegue adaptar isso? Como chegar ao epicentro do enredo? Philip funcionava assim. Ele era um homem complexo com um cérebro multifacetado sem qualquer linearidade. Felizmente tínhamos dez episódios de 50 minutos para preencher”, comentou Scott à EW pouco antes da estreia da primeira temporada.
Com Ridley a bordo da produção-executiva, a Amazon convocou outro nome forte para o projeto: Frank Spotnitz, roteirista, produtor e conhecido por fazer parte da equipe criativa de Arquivo X. Nas mãos de Frank, o projeto encontrou o tom perfeito. Como todas as boas histórias contextualizadas em universos alternativos – sejam futuristas, pós-apocalípticas ou distópicas – O Homem no Castelo Alto possui uma maior preocupação na construção de um imaginário dramático do que no desenvolvimento de personagens. Na primeira temporada, a série argumenta de forma repetida e provocante que, caso os Estados Unidos fossem um país fascista, a maioria da população aceitaria este fato. The Man in The High Castle examina com sucesso o potencial sedutor do fascismo e a passividade de uma massa que ignora as atrocidades provocadas pelo poder e se conforma com o status quo construído ao longo dos anos pós-guerra.
“Quando você cresce dentro de um determinado sistema, seja político, econômico ou familiar, você está muito próximo de suas falhas para realmente percebê-las. Você pode encontrar pequenos vestígios, mas a familiaridade esconde questionamentos mais complexos. O fascismo é maldoso e terrível, e quis mostrar as consequências de uma ideologia baseada no ódio e as pessoas que estão dispostas a tomar atitudes terríveis só porque elas foram convencidas que são corretas”, analisou Spotnitz.
O produtor também poderia ter criado um cenário repleto com representações caricatas de nazistas. Ao invés disso, moldou personagens reais e embrenhados na sociedade dos EUA, modificada após 15 anos de intercâmbio e apropriações culturais entre o nazismo e ideais norte-americanos. “Os nazistas foram por muito tempo os vilões perfeitos de Hollywood, mas sempre foram cartunescos. Tentei mostrar que eles vão além de pessoas com sotaque engraçado e que fazem coisas terríveis. Algumas de minhas cenas favoritas na temporada são aquelas que se assemelham ao nosso mundo, como a celebração do dia da Vitória na casa do Obergruppenführer Smith. Isso te faz pensar sobre nossos valores atuais e os que os diferenciam do que estamos vendo na série.”
É na perturbadora verossimilhança com a nossa realidade que The Man in The High Castle mais se destaca. Sabemos que a história criada na mente genial de Philip K.Dick é reinventada e que, apesar do universo ficcional de O Homem do Castelo Alto ser diferente daquele em que vivemos, principalmente quando comparados os costumes e valores, as semelhanças são assombrosamente inegáveis. Ao observar o funcionamento de diferentes aspectos da sociedade norte-americana em uma versão alternativa de nossa realidade, Dick persegue uma questão que está por trás de grandes clássicos do gênero: “e se..?”.
“Seria muito fácil criar uma caricatura da sociedade nazista, e todos iriam criticar. Se você aproximar esses conceitos do mundo que vivemos, isso nos força a pensar sobre os valores que defendemos. O que nosso país prega? Quais são nossos valores comparados com os deles? É preciso pensar nisso, que toda geração precisa refletir e agir. O que mais me chocou quando li o livro foi perceber que não necessariamente os bonzinhos ganham. Não podemos contar com isso, não é automático. Se você quer um mundo justo, é preciso lugar por isso”, comentou Spotnitz.
Um dos eixos centrais de O Homem do Castelo Alto é a metalinguagem. No romance de PKD, existe um livro dentro do livro que mostra um mundo em que os Aliados derrotaram o Eixo na Segunda Guerra Mundial. Proibida no Reich e tolerada no Japão, The Grasshopper Lies Heavy foi escrito por Hawthorne Abendsen, uma figura enigmática conhecido como “O Homem do Castelo Alto”. A série também aposta na metalinguagem, mas em formato de filme. É nesta história alternativa dentro de uma história alternativa que PKD levanta a grande questão do livro: O que é realidade, afinal?
Em tempos onde conceitos como pós-verdade e fatos alternativos dominam as manchetes de meios de comunicação e obras de George Orwell, Margaret Atwood e Hannah Arendt se destacam nas listas de mais vendidos, a mensagem de O Homem no Castelo Alto reverbera cada vez mais forte. Ainda que sem a direção de Frank Spotnitz, que largou o cargo antes do começo das gravações – mas se manteve como produtor-executivo – os dez episódios da nova temporada prometem manter o mesmo nível da primeira e expandir a fascinante premissa da obra de Philip K Dick para criar novos horizontes para seus personagens e mergulhar de cabeça na ficção paralela de um mundo que por muito pouco não se tornou realidade.