Quando Stephen King estava começando sua carreira, ele teve a ideia de criar uma história sobre um Pistoleiro que era perseguido por um Homem de Preto que queria impedi-lo de salvar aquela que ele conhecia como A Torre Negra. Jovem e ansioso por afirmação, King chegou até o fim do primeiro livro, mas não ficou satisfeito com o resultado. Parecia hermético demais, confuso; e ele preferiu deixar a ideia guardada. Era uma ideia muito doida sobre um eixo concreto que segurava as muitas “terras” que estavam à nossa volta, com semelhanças entre si, mas essencialmente diferentes.
O escritor seguiu com sua obra... Carrie, seu primeiro romance, se tornou um grande sucesso e lhe abriu as portas para continuar explorando sua criatividade. E essa criatividade, volta e meia, se manifestava dentro de uma métrica curiosa: as histórias eram cheias de tensões preparadas por muitas e muitas páginas; e geralmente a ameaça maior era pseudohumana. It, Jerusalen’s Lot, Needfull Things, Buick 8, Insônia, Tempestade do Século, O Nevoeiro, Os Olhos do Dragão, Dança da Morte... Eram muitos os títulos em que esse “vilão” surgia de origens desconhecidas, de onde também vinham criaturas bizarras que eram derrotadas sem que soubéssemos exatamente quem eram.
Eis que em 2004, após a publicação do último livro da saga, pôde-se ter um panorama realmente esclarecedor sobre o que o escritor estava tentando dizer. Na trama da Torre Negra, Roland e mais três companheiros de viagem – cada um de uma realidade – viajavam para tentar impedir que a mesma fosse destruída. Era ela, a instabilidade da Torre, que enfraquecia o eixo e acaba permitindo, eventualmente, que uma dimensão encostasse ou vazasse para a outra. Esses vazamentos acabavam permitindo que criaturas ou versões humanas transgredidas visitassem o mundo como conhecemos, o que explicava, surpreendentemente, várias das obras do autor.
Essa grande introdução sobre o multiverso de King é apenas para incitar a ideia de que The OA adentrou o pátio de sua própria Torre Negra ao abandonar a narrativa de suspeita em torno de Prairie (que permeou toda a primeira temporada) e ter revelado que suas construções pretendem mesmo é nos desafiar a vislumbrar esse mesmo véu que separa vários mundos. Existem, contudo, as diferenças que tornam o universo de The OA plural à sua maneira. E é sobre essas diferenças que vamos falar um pouco logo abaixo.
O Ka de Prairie
Quando a série começou, achávamos que estávamos diante de uma trama sobre como as pessoas eram afetadas por experiências de quase-morte. Era notório que o texto de Brit Marling queria provocar a teoria de que essas experiências ofereciam às pessoas um vislumbre momentâneo de outra dimensão. Contudo, fomos levados a crer num primeiro momento que essa outra dimensão dizia respeito ao mundo pós-vida. Ao “paraíso” ou ao que quer que estivesse do outro lado, no sentido espiritual mesmo. Isso era reforçado, inclusive, pela paleta de cores sempre pautada na cor violeta. Observem:
“Violeta é a cor do segredo, é através desta cor que vai se realizar o mistério da reencarnação ou da transfusão espiritual. Por isso, a cor violeta e a própria flor violeta estão associadas à doutrina espírita”.
Entretanto, após a execução dos movimentos que tornavam possível a passagem para a outra dimensão, fomos surpreendidos pela ideia de que de fato a personagem tinha atravessado, mas não para uma dimensão além-vida e sim para outra vida, uma outra versão dela. Segundo a série, pessoas com distúrbios de personalidade, por exemplo, estão sendo possuídas, constantemente, por versões vazadas de outros planos. Assim, se estabeleceu que The OA estava abraçando a teoria dos universos paralelos e que sua mitologia se expandiria definitivamente.
Nina
Por ser uma série sobre mitologia, The OA tinha que estabelecer a sua. Aos poucos, durante os episódios, vamos entendendo que as experiências de quase-morte oferecem sim um vislumbre do outro lado, da outra dimensão. Mas, também entendemos que não são só os movimentos que permitem tal feito. A Nina para onde Prairie salta, sua versão alternativa, conduz pesquisas para tentar olhar para esse outro lado. Assim como Stephen King faz com a Torre Negra, em que lugares e termos ajudam a solidificar a mitologia, The OA também usa a estratégia estabelecendo que:
A CASA: é uma espécie de catalisador de energias que permitem o despertar da...
SEMENTE: ... que é um termo usado para determinar aqueles que puderam, de certa forma, reconhecer a fronteira entre as dimensões. Essas pessoas, contudo, se tornam vulneráveis e são capturadas pela versão alternativa de Hap. Esse tipo de dramaturgia é sempre tomada de licenças visuais extremamente diretas, o que explica as Lagostrosidades da Torre Negra e o polvo de The OA. É uma tentativa de imprimir a estranheza entre os mundos. Por isso, também, a série toma a liberdade de tornar visual o florescer desta semente, fazendo com que os ramos que vazam desses que entraram na casa, saiam de seus ouvidos e possam conter, inclusive, informações sobre o controle dessas realidades.
Branches
Existem algumas metáforas que a série acessa constantemente. Um tronco de árvore se forma no mosaico de cerâmicas e essa ideia de algo que ramifica é completamente condizente com a maneira como Prairie se conecta com os que deixou na primeira dimensão. Essa mesma ideia de vida através do que a natureza tem de onírico persegue a mitologia, já que são ramos que saem daqueles que tiveram ativadas suas sementes. Também é uma pétala que Hap devora para tentar acessar mais informações e atravessar junto com Prairie. Além, é claro, da pomba que já tinha aparecido na primeira temporada e que representa uma conexão clara com forças superiores. Ainda que fale de multiverso, a série não abandona a ideia de que Prairie tem algo de místico sobre si.
NINA: um nome que deriva de “sono”, “sonho”.
OA: Original Angel.
Mas, até que ponto o multiverso está afetado por elementos divinos ou os elementos divinos como conhecemos não passam de vazamentos desses mesmos universos?
Jumping
No final da segunda temporada, estamos diante de um salto triplo até o outro lado, mas eles não acontecem nos mesmos termos. Enquanto Nina salta naturalmente, Hap praticamente se obriga a ir ao ingerir as informações daqueles que mantém na piscina. Do outro lado, Karim também “atravessa” de certa forma, mas o alcance dele está limitado, já que ao que parece, a janela apenas oferece um vislumbre do outro lado, no exato momento em que um salto efetivo acontece.
Aqui temos, então, uma virada metalinguística que também aproxima The OA de A Torre Negra. Na obra de King, em determinado momento, os personagens que seguem atravessando as realidades descobrem que existe um homem que consegue, também, sentir a fragilidade desses portais e que tem escrito sobre eles. Os personagens decidem procurá-lo e é aí que A Torre Negra dá o salto maior: o homem que eles procuram é o próprio Stephen King, que é encontrado no exato momento em que sofre um atropelamento (que o escritor realmente sofreu na vida real).
Brit Marling faz a mesma curva. Uma vez que os saltos levam a versões alternativas de uma mesma pessoa, ela parte do princípio de que a vida de Prairie, Nina e da própria Brit, são camadas dessa existência compartilhada. Faz sentido, então, que a terceira dimensão para onde vão os personagens, seja aquela em que eles são os atores que os vivem. Notem que nos três mundos vistos até agora, Hap e Prairie tem uma ligação: em um ele a sequestrou, no outro ela era uma investidora e ele um cientista, até o terceiro, onde são atores fazendo uma série. É ousado e arriscado, mas também positivamente provocativo.
Se não precisarmos esperar até 2022 para continuar acompanhando essa história, é provável que muitas outras viradas nos surpreendam. Não sabemos qual será o papel de Steve, de Karim ou mesmo se Hap e Prairie terão consciência do que lhes aconteceu. Até lá, só nos resta aguardar e teorizar.