Com This is Us, acaba também a era dos grandes hits da TV aberta americana

Créditos da imagem: Sterling K. Brown, Chrissy Metz e Justin Hartley em cena de This is Us (Reprodução)

Séries e TV

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Com This is Us, acaba também a era dos grandes hits da TV aberta americana

Emissoras, um dia poderosas, perderam relevância de vez desde a estreia do drama

Omelete
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25.05.2022, às 11H28.

Em 4 de fevereiro de 2018, quase 27 milhões de norte-americanos assistiram ao episódio de This is Us que a emissora NBC exibiu logo após o jogo do Super Bowl daquele ano. O capítulo, apropriadamente intitulado “Super Bowl Sunday”, finalmente revelava as circunstâncias da morte de Jack (Milo Ventimiglia), se posicionando assim como um pedaço essencial da mitologia da série, e atraindo milhões de novos fãs para a saga familiar agridoce dos Pearson.

Desde “Super Bowl Sunday”, apenas uma série ficcional ganhou a honra de exibir um episódio logo depois do Super Bowl: The Equalizer, em 2021, que atraiu 20 milhões de espectadores para o programa policial estrelado por Queen Latifah. Nos outros anos, coberturas esportivas (as Olimpíadas de Inverno, em 2022) e reality shows (Next Level Chef será a programação pós-Super Bowl em 2023) ocuparam um espaço que, no passado, abrigou capítulos de séries cruciais para entender a cultura de suas épocas, como Esquadrão Classe A, Friends, Arquivo X e Os Simpsons.

Esses fatos e números servem para solidificar uma impressão que emerge, muito distinta, conforme This is Us se aproxima da exibição do seu último episódio (no Brasil, ele chega ao Star+ na quinta-feira): o drama criado por Dan Fogelman pode muito bem ser o último grande hit da TV aberta americana. Se um dia já foram forças culturais poderosíssimas, moldando opiniões e diálogos públicos, as três grandes emissoras abertas do território estadunidense (ABC, CBS, NBC) parecem apagadas, hoje, diante da força do streaming, adotado como formato até pelas emissoras “de prestígio” da também arcaica TV a cabo, como a HBO.

A família Pearson reunida em cena de This is Us (Reprodução)

Basta olhar, inclusive, para o relatório de maiores audiências da TV aberta americana da temporada 2020-21, publicado pela Variety. O top 15 de programas mais vistos inclui três faixas de transmissão de futebol americano, um programa jornalístico (60 Minutes), e uma porrada de thrillers procedurais que mobilizam a audiência mais velha (além da já citada The Equalizer, temos nesse grupo títulos como NCIS, FBI, Chicago, 9-1-1). Fugindo desse paradigma, só mesmo This is Us, na 13ª posição, e Young Sheldon, na 14ª - e, vamos ser sinceros, o spin-off de The Big Bang Theory herdou parte do público da sitcom, mas mal registra nos radares de não-fãs como entidade cultural.

De fato, na ausência de This is Us, qual série ficcional atualmente exibida por uma das três grandes emissoras americanas registra dessa forma? Talvez a resposta seja Grey’s Anatomy, é claro, um titã de audiência e longevidade que venceu pelo puro cansaço a limitação nichada dos programas médicos e se tornou um nome reconhecível ao redor do mundo, com imitadores aos montes tentando replicar o seu sucesso (e falhando). Mas Grey’s é uma sobrevivente de outra era, estreando mais perto de títulos como Lost e House M.D. do que de This is Us.

De forma semelhante, a Fox (saudada em outras épocas como a principal “4ª via” da TV americana) se agarra à relevância minguante de relíquias como Os Simpsons e Family Guy em sua programação ficcional; e a CW (vista como a 5ª opção, mas sempre muito atrás em termos de audiência) passa por uma gigantesca reformulação, cancelando hits como Riverdale e finalizando franquias poderosas como The Vampire Diaries e (boa parte do) Arrowverse para abrir espaço para outra lógica de programação.

Raios caindo no mesmo lugar

Milo Ventimiglia e Mandy Moore em This is Us (Reprodução)

A sensação é que o fim de This is Us chega em um momento no qual a transição de paradigma televisivo que temos visto durante pelo menos a última década (faz nove anos que a Netflix estreou House of Cards) está alcançando seus últimos estágios. Todos os anos, as emissoras abertas americanas estreiam literalmente dezenas de novas séries dramáticas e cômicas - e, há seis temporadas, absolutamente nenhuma delas alcança o impacto cultural de uma This is Us. Talvez seja a hora de aceitar que não vai acontecer de novo.

De fato, o próprio sucesso de This is Us se deve a uma combinação de fatores difíceis de replicar. Quando lançado, em maio de 2016, o primeiro trailer da série quebrou recordes de visualizações (80 milhões em duas semanas), em grande parte por causa da já icônica cena, logo no começo da prévia, em que Milo Ventimiglia mostra brevemente o bumbum. A presença do ator, um galã que marcou gerações em Heroes e Gilmore Girls, encapsula muito do apelo inicial de This is Us, mas não foi (só) por ele que os fãs assistiram ao trailer até o final, ou ficaram com os Pearson semana após semana.

Ao invés disso, o que o criador Dan Fogelman e sua equipe conseguiram capturar foi o apelo do folhetim familiar lançado linearmente. Acompanhar os dramas de Jack, Rebecca, Kate, Kevin, Randall e família estendida não foi tão diferente de acompanhar as reviravoltas de Maria do Carmo e Nazaré, Nina e Carminha, Flora e Donatela. This is Us pode não ter confiado em trocas de bebês na maternidade ou gêmeos malvados para segurar a audiência, mas tampouco conseguiu fugir do senso de absurdo criado pela necessidade narrativa, conforme os anos passavam, de despejar toda tragédia e picuinha possível em cima da mesma família.

Sterling K. Brown e Susan Kelechi Watson em This is Us (Reprodução)

Nos últimos anos, era difícil não sentir que This is Us havia se tornado uma paródia de si mesma. Sempre mortalmente séria sobre os conflitos humanos em seu centro, e sempre atenta à universalidade da história que contava, a série lançou mão de um pouco de humor para reconhecer o cansaço dos espectadores com a luta interminável dos Pearson contra eles mesmos. Basta pensar em quantas vezes ouvimos Beth, Toby e Miguel reclamando ou zombando, de maneira resignada, sobre a impossibilidade de ter uma reunião de família minimamente pacífica.

E, ainda assim, a audiência continuava voltando na semana seguinte. Como qualquer novelão em seus episódios do miolo, This is Us passou por um momento em que não parecia saber onde estava indo, o que fazer com o mundo que construiu. Além de um elenco exemplarmente comprometido, e a assistência dos lançamentos em streaming ao redor do mundo, a série resistiu como entidade cultural por seis temporadas porque continuou verdadeira à sua missão: mostrar, ainda que sob lente de aumento, tanto as dúvidas angustiantes quanto os laços inquebráveis que nos fazem quem somos.

O tempo, a paciência e a necessária diluição de polêmicas da TV aberta são parte integral dessa receita. A série foi o último hit desse formato porque só funcionaria nesse formato - e porque, hoje em dia, as pessoas que criam séries não pensam mais dentro da lógica dele. Para o bem e para o mal, o fim de This is Us parece ser também o adeus de toda uma forma de fazer TV.

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