Aqueles que conhecem um pouco da carreira de Tina Fey e assistiram 30 Rock – programa que ela criou baseado em suas experiências com humor e TV – sabem que a dramaturgia proposta por ela não tem nada de linear, nada de convencional e que suas bases são completamente alegóricas. Isso quer dizer que, embora alguns impulsos ou mesmo alguma gênese de uma piada tenha raízes no mundo real, a forma como tudo isso é traduzido no estilo de Tina é completamente imprevisível. Como em toda dramaturgia que trabalhe com alegorias, o que vale não é a forma da verdade e sim o quanto você pode desconstruí-la.
A experiência da criadora em seus tempos de integrante do Saturday Night Live proporcionaram uma espécie de “laboratório” que fez de 30 Rock uma chance de mostrar como os bastidores de um programa de humor “ao vivo” podem ser loucos. Mesmo lá – em que um nível de compromisso com a realidade era exigido – já havia sinais de que o público desse tipo de show não deve esperar por conflitos organizados pelas antigas regras de um roteiro. Piadas, referências, descolamento total de “senso comum”, tudo se mistura numa linguagem que muitas vezes parece um sonho, de tão caótica.
Com o fim de 30 Rock, Tina deu início a uma nova empreitada chamada Unbreakable Kimmy Schmidt, que sem o background de se passar num programa de TV encontrou caminho livre para continuar desafiando regras dramatúrgicas sem nenhuma cerimônia. E a única forma de apreciar esse tipo de produção é nos descolando da realidade do mesmo jeito que fazemos quando assistimos a um filme de super-herói: o herói e o jornalista são a mesma pessoa, que é diferenciada da outra por um par de óculos e uma voz tímida. A intenção nunca foi contar a vida como ela é, mas exemplificá-la com recursos textuais e estilísticos que sejam loucos e provocativos.
Unbreakable
Unbreakable Kimmy Schmidt até tem uma premissa. Ela é uma mulher que foi sequestrada quando adolescente e viveu anos presa num bunker com um “reverendo” que garantia que a estava salvando – ela e outras três mulheres – do apocalipse. Uma vez liberta do cativeiro, Kimmy resolve mudar para NY e viver tudo que não podia. Essa premissa, entretanto, não escraviza a série num compromisso de crescimento narrativo. Depois que chega na “cidade grande”, Kimmy se depara com muitas coisas novas e é claro que isso se torna divertido justamente porque o público ama esse tipo de readaptação que faz o protagonista ser alguém por quem a gente torce.
Sendo assim, há pouco o que se dizer sobre a terceira temporada se não for para ficarmos listando todas as maravilhosas piadas com celebridades ou os momentos em que os personagens foram deliciosamente amorais. Há, essencialmente, quatro plots centrais que tentam costurar os eventos e na maioria das vezes a gente torce para que o investimento neles seja o menor possível, já que a série cresce mesmo é no humor aleatório.
Esse ano Kimmy (Ellie Kemper) entrou na faculdade e essa é mais ou menos a “missão” dela na temporada. Titus (Tituss Burgess) continua tentando uma chance no showbiz depois de fracassar tanto no relacionamento quanto no trabalho no cruzeiro. Lilian (Carol Kane) continua envolvida nas “questões políticas” do bairro e Jacqueline (Jane Krakowski) permanece no conflito entre ter amadurecido como pessoa depois de se conectar com suas origens ao mesmo tempo em que tenta conseguir um marido rico. Mesmo que tudo isso esteja demarcado numa espinha dorsal básica do que deve guiar esses novos 13 episódios, todos nós sabemos que no final das contas o que importa mesmo é qual loucura será cometida no próximo quadro.
E o texto da equipe de Fey não é lá muito fácil. Na maioria das vezes ele é tão irreal que poderia facilmente ser ridículo. Mas, Ellie Kemper entende quem é Kimmy Smichdt e consegue desvendar um pouco de seu empoderamento mesmo que por trás de tanto nonsense. Sua natureza otimista a qualquer custo é comovente e dá uma bela lição sobre não viver em vitimismo. Porém, o plot da faculdade perde força em vários momentos porque a série redireciona focos o tempo todo, com direito até a um inesperado crossover com Orange is the New Black. Essa perda de foco não é um problema para o programa de forma alguma, só gera aquela sensação de que tudo está sempre voltando para o mesmo lugar.
Essa também deve ser uma das temporadas com mais uso de referências a outras séries e programas. Titus parodiando Beyoncé já é um clássico e também é dele outro momento incrível da temporada, que é quando ele vira a voz de um mascote de comercial de remédio para incontinência urinária. Ao mesmo tempo, essa deve ser a temporada em que as histórias dele, de Jacqueline e de Lilian mais seguiram paralelas as de Kimmy, o que não é um problema nem um pouco. O melhor desse tipo de dramaturgia alegórica é que ela é garantia absoluta de longevidade desde que os envolvidos queiram isso. Se as histórias “centrais” não são levadas a sério de modo claro, a matéria-prima da série se torna a relação direta entre o ator e o personagem, fazendo com que ainda nos deliciemos com as “esquetes” do dia, situações em que eles se colocam ou são colocados, só para que os vejamos atuando em todas as mais diversas situações. Unbreakable Kimmy Schmidt não é uma série para todos, mas sabe muito bem honrar aqueles que a tomam para si.
By the way, que Yuko seja promovida a regular no ano que vem...