Watchmen é reconhecida como um marco cultural por diversos fatores. A HQ de Alan Moore e Dave Gibbons imaginou, na década de 1980, como seria a cultura dos super-heróis no mundo real. Para isso, a trama cria um elenco de personagens diversos que se apropriam de arquétipos para mostrar como a conduta dos vigilantes mascarados seria distante das fábulas idealistas publicadas desde o surgimento do gênero, em 1930, com a estreia do Superman. Partindo desse princípio, a história transita por variados gêneros em uma trama que faz comentários sociais e constrói uma sólida mitologia que desafia os limites da narrativa encontrada nos quadrinhos até então. Com tantas camadas, a história ganhou fama de ser “inadaptável”, noção colocada à prova pela primeira vez em 2009, com o lançamento do filme, e agora em 2019, com a série da HBO. Separadas por uma década, as obras impactam o legado da obra original de formas completamente diferentes.
Quando o filme dirigido por Zack Snyder chegou aos cinemas, a recepção foi mista entre fãs e críticos. Com a ingrata missão de adaptar doze edições de uma HQ complexa, a produção tentou ao máximo se manter fiel ao quadrinho. Modificando apenas o final, quando troca um falso monstro alienígena por uma bomba, a produção foi elogiada por apresentar quase que de forma literal os eventos do seu material base. Entretanto, na transição entre mídias, o longa deixa escapar parte da essência do quadrinho ao estabelecer uma fidelidade raza que deixa de lado pontos cruciais da HQ, ao mesmo tempo em que glamouriza clichês da cultura super-heróica que são ridicularizados na obra original.
Vigilantes no filme Watchmen (2009)
Apesar disso, o filme teve uma grande importância ao apresentar o quadrinho original para uma nova geração de fãs. Por se tratar de uma obra fechada, Watchmen vai na contramão de personagens como Homem-Aranha ou Batman, que se mantêm relevantes por sempre se renovar com seu público, ganhando novas HQs, filmes, animações e videogames no decorrer dos anos. Por essa razão, mesmo com suas falhas, o longa conseguiu jogar a obra no mainstream, fazendo com que pessoas fora do nicho quadrinho/livros ao menos soubessem de sua existência. Considerando a recepção mista e a arrecadação morna do filme, era de se esperar que o quadrinho não ganhasse nova vida em outras mídias até que, em 2017, a HBO anunciou uma série baseada na HQ.
Heroísmo no mundo moderno
Ao contrário do filme, o seriado não é uma adaptação direta do quadrinho, mas sim uma espécie continuação. Quando a produção foi anunciada, o criador Damon Lindelof fez questão de publicar uma extensa carta aos fãs afirmando que absolutamente tudo o que está nas páginas do quadrinho - definido como “velho testamento" da série - seria cânone. Situada mais de 30 anos após o desfecho da HQ, a produção fisgou o público instantaneamente com a promessa de responder como estaria aquele mundo após o ataque da “lula interdimensional”. Nesse quesito, um dos melhores exemplos está na forma como a produção se apropriou dos personagens concebidos por Alan Moore e os trouxe para a realidade de 2019. O cinismo de Laurie, que agora utiliza o sobrenome Blake, a decadência de Adrian Veidt, a paranoia criada pelos diários de Rorschach, todas questões fortemente baseadas na construção dos personagens no quadrinho original.
Ainda que fosse fácil manter a atração baseada nos personagens antigos, o seriado também foi esperto ao apresentar uma nova leva de justiceiros mascarados e o complexo mundo ao seu redor. Sister Night, a protagonista interpretada por Regina King, exala personalidade e parece um passo natural na evolução dos vigilantes mascarados. Investigando seus traumas, aliados e principalmente seu passado, a série consegue estabelecer uma relação de simbiose com o quadrinho, especialmente quando é revelado que seu avô é Will Reeves, personagem original da série que se revela como o verdadeiro Justiça Encapuzada, o primeiro mascarado a combater o crime no quadrinho. Na HQ, o herói tem uma trajetória envolta em mistério. Sua origem, motivação e identidade são propositalmente deixadas incógnitas, abrindo uma enorme brecha para que a série investigue quem poderia estar por trás do primeiro grande herói da América.
Sister Night: o novo rosto de Watchmen
Essa decisão rima com um dos maiores trunfos da obra original, que intercala a trama principal com um estudo de seus personagens. A HQ apresenta seus heróis entre defeitos e virtudes para em seguida investigar quais circunstâncias levaram-nos até ali, criando memoráveis momentos como os capítulos focados em Rorschach e Doutor Manhattan. A série da HBO faz o mesmo ao revelar que a onda dos heróis surgiu porque Will Reeves vestiu a máscara como último recurso em uma luta contra toda uma sociedade racista. Cada etapa da jornada do personagem aponta uma ferida, desde sua trágica origem no massacre de Tulsa - evento propositalmente apagado de livros de história - até a necessidade de se passar por um homem branco para poder combater o crime, algo que não conseguia fazer como policial por conta de sua cor de pele.
Ao mesclar com cuidado a reverência e a coragem para ir além, a série de Watchmen conseguiu ainda um feito ainda mais inesperado: fazer com que o público voltasse à HQ com olhos mais atentos. Em seu primeiro episódio, a série apresenta um grupo supremacista branco chamado Sétima Kavalaria, uma espécie de Ku Klux Klan desse universo, que adotou a máscara do Rorschach como novo capuz. Uma escolha que causou confusão em parte do público, que sempre viu o vigilante como um grande herói, ignorando todo o discurso extremista que baseava suas ações. Fator ignorado também no filme, que retratava seus doentios métodos com uma aura heróica, como se justificasse a má conduta do herói com grandes cenas de ação. Em escolhas como essas, a série faz com que o fã releia o quadrinho com olhos mais atentos à temática da obra, que desde o início buscou ir além do velho combate entre mocinhos e bandidos.
“Nada nunca acaba” é a última fala do Doutor Manhattan na HQ, uma frase que pode ser lida uma boa constatação a respeito do status do quadrinho no DNA da cultura pop. Contrariando toda a expectativa que uma obra tão autocontida poderia gerar, Watchmen sempre encontra uma forma de voltar aos holofotes e se fazer relevante. Após anos cultuada como um marco não só nas HQs, mas também na literatura, em questão de uma década essa obra chegou a novos públicos, apresentou novas questões e gerou importantes reflexões não a respeito de sua trama, mas do mundo em que ela se insere. É impossível prever um futuro para Watchmen, mas é seguro dizer que seu impacto nunca acabará.