Boba Fett tem uma das histórias mais curiosas entre os milhares de personagens da franquia Star Wars. Criado em 1978 para o infame especial de Natal da franquia, o caçador de recompensas é considerado até hoje o único ponto positivo do especial que, entre outras coisas, apresentou a família de Chewbacca e fez Luke (Mark Hamill) e Leia (Carrie Fisher) cantarem músicas natalinas. Dois anos depois, Fett foi parte importante de O Império Contra-Ataca, armando, ao lado de Darth Vader, a emboscada que levou Han Solo (Harrison Ford) a ser capturado e entregue a Jabba. A armadura intimidadora, a personalidade quieta e o fato de ter capturado um dos heróis da saga transformaram o mandaloriano em um dos queridinhos dos fãs e um dos principais protagonistas das histórias do Universo Expandido – coleção de livros, quadrinhos e contos que, até a compra da Lucasfilm pela Disney, eram consideradas cânone pelos fãs. Nem mesmo a morte ridícula de Fett em O Retorno de Jedi foi o bastante para decepcionar fãs da saga. Essa “honra” ficou com O Ataque dos Clones, quando George Lucas decidiu desmistificar o caçador de recompensas e transformá-lo em um clone de um mandaloriano chamado Jango Fett.
Acontece que, para aqueles que cresceram com as histórias do Universo Expandido, Boba era muito mais do que o personagem de poucas palavras visto nos cinemas – e com certeza não era o garoto incômodo apresentado no Episódio II. Fett era o melhor dos caçadores de recompensas do universo, um habilidoso piloto e um grande estrategista e suas histórias, que variavam de aventuras épicas a contos de espionagem, nunca foram esquecidas por seus fãs. Um desses fãs é Jon Favreau, cineasta responsável por dar o pontapé inicial do MCU com Homem de Ferro e homem de confiança da Disney para o projeto milionário que foi o remake de O Rei Leão. Cercado de outros nomes talentosos, como Bryce Dallas-Howard, Taika Waititi e Dave Filoni, o cineasta desenvolveu The Mandalorian, série que procura traduzir todo o encanto criado pelas histórias de Boba Fett para as telas do Disney+, nova plataforma de streaming da Casa do Mickey. E, pelo apresentado no primeiro episódio, a equipe está no caminho certo.
Com um novo protagonista, vivido por Pedro Pascal (Narcos, Kingsman: O Círculo Dourado), Favreau decidiu se aprofundar no submundo do universo criado por Lucas, mostrando uma galáxia em crise, tentando responder à troca repentina de regime após uma guerra civil e a queda do Império. Logo em sua cena de abertura, o Mandaloriano já mostra toda a sua habilidade em combate, derrotando, em uma briga de bar, dois valentões que, por coincidência, incomodavam justamente o homem que deveria capturar. Mesmo em menor número, a vantagem do protagonista nunca fica em dúvida; do segundo que ele entra em cena, sua aura intimidadora cala quase todos os presentes e, assim como Fett, o personagem de Pascal não precisa dizer uma palavra.
Dirigido por Filoni, que tem ampla experiência no comando de derivados de Star Wars, tendo trabalhado por anos na animação Clone Wars, o primeiro capítulo da nova série é visualmente muito próximo ao visto nos primeiros filmes da saga. Ainda assim, o tom do roteiro apresenta algo completamente diferente: enquanto Luke, Leia e Han lutavam por um ideal, o Mandaloriano faz o que faz por sobrevivência – própria e de seu povo.
O conto de fadas espacial criado por Lucas é trocado por um cenário extremamente caótico, em que facções de mercenários dominam regiões da galáxia muito, muito distante, enquanto povos pacíficos esperam, em vão, que algum dos caçadores de recompensas enviados consiga espantar os terríveis novos moradores. O contraste entre o belo e nostálgico visual com a proposta de explorar esse lado ainda inédito de Star Wars transformam a estreia de The Mandalorian em uma das grandes promessas desse segundo semestre, em uma mistura tão boa quanto a apresentada em Watchmen, da HBO.
O roteiro do primeiro capítulo leva ao extremo a máxima do “mostre, não fale”, com as ações dos personagens dizendo muito mais do que linhas de diálogo desnecessárias. Mesmo Werner Herzog, que tem o discurso mais longo desses primeiros 40 minutos, é caracterizado muito mais pelos símbolos à sua volta – um colar com o escudo imperial e guardas vestidos de Stormtroopers – do que por sua curta fala sobre a retomada do status quo. Em menos de uma hora de episódio, o protagonista sem rosto tem um desenvolvimento muito mais aprofundado do que o de Boba ou Jango Fett jamais tiveram nas mãos de Lucas.
A ação de The Mandalorian também caracteriza essa sociedade mais caótica do que a apresentada nos Episódios de IV a VI. Como já era de se esperar pelos trailers, os confrontos lembram muito duelos de filmes de faroeste, embora a presença do engraçadíssimo – e inconveniente – IG-11 (Taika Waititi) traga a leveza familiar da saga ao combate contra a violenta raça de mercenários enfrentada pelo Mandaloriano.
Com poucos diálogos, uma fotografia deliciosamente nostálgica e uma construção de personagens cuidadosa, The Mandalorian começa sua transmissão épica de maneira emocionante, que deve agradar tanto novos quantos velhos fãs da franquia, sem esquecer daqueles que cresceram com as lendas do Universo Expandido do mandaloriano original.