Tudo começou com um review no Letterboxd - e sim, a gente sabe que nenhuma história boa começa desse jeito. Postado em março, o comentário do usuário based gizmo indicava o uso de inteligência artificial em alguns gráficos que aparecem no filme Entrevista com o Demônio, uma produção independente estrelada por David Dastmalchian (O Esquadrão Suicida) que estava causando frisson na pequena - mas vocal - comunidade do cinema de horror alternativo. Dias depois, a Variety estava falando do assunto, e subitamente o uso da IA pelos diretores Colin e Cameron Cairnes virou tema quente na cinefilia por um tempo.
Mas, afinal, o que aconteceu, e o que isso significa para o cinema? Com a chegada de Entrevista com o Demônio nos cinemas brasileiros, o Omelete te explica essa história, em todos os detalhes, a seguir.
Onde Entrevista com o Demônio usou inteligência artificial?
Na trama de Entrevista com o Demônio, acompanhamos um capítulo inteiro do programa de auditório fictício Night Owls, exibido nos anos 1970 e comandado por Jack Dorsey (Dastmalchian). No episódio em questão, um especial de Halloween, ele pretende trocar “um dedo de prosa” com uma menina possuída pelo diabo - além de receber algumas outras atrações apropriadamente sinistras, é claro.
Para nos imergir no universo do programa, o filme aposta alto em cenários, figurinos, penteados, vinhetas e artes gráficas que remetem aos anos 1970. É aí que entram as ilustrações realizadas com a ajuda da inteligência artificial: sempre que Night Owls passa por um intervalo comercial, Entrevista com o Demônio nos mostra um gráfico diferente, com temática de Halloween e a mensagem “voltamos já!” (“we’ll be right back!”).
O usuário do Letterboxd que fez seu review em março identificou falhas típicas de imagens produzidas por IA nestas ilustrações, e argumentou não só que as artes em questão quebravam a ilusão setentista da trama, como também que a equipe de Entrevista com o Demônio havia privado um artista de seu trabalho ao realizá-las digitalmente. “Fiquem mais bravos com isso, se vocês realmente têm paixão pelo cinema”, escreveu ele.
O que dizem os diretores de Entrevista com o Demônio?
Em sua primeira resposta oficial à polêmica, naquela mesma matéria da Variety, os irmãos Cairnes admitiram ter “experimentado com a inteligência artificial no processo de criação de três imagens estáticas utilizadas no filme”, acrescentando que o resultado inicial gerado pela IA foi “editado extensivamente pelo nosso incrível time de design de produção e design gráfico, que trabalhou intensamente para criar a estética setentista que sonhávamos para o filme”. “Nós nos sentimos sortudos por poder trabalhar com uma equipe tão talentosa e apaixonada por seu trabalho, que nos ajudou a dar vida a este filme. Mal podemos esperar para que todos vocês possam ver o resultado nos cinemas”, completaram.
A resposta diplomática foi expandida em uma entrevista para o próprio Letterboxd, na qual Colin Cairnes definiu Entrevista com o Demônio como “um produto do tempo em que foi feito, do tempo em que foi finalizado, e do orçamento que tinha para ser finalizado”. O cineasta se referia ao fato de que o longa de terror fechou sua pós-produção em março de 2023, a tempo da estreia no festival SXSW, nos EUA - e dois meses antes do WGA, o sindicato de roteiristas de Hollywood, iniciar uma greve movida, em grande parte, pela necessidade de normas mais rígidas sobre o uso da inteligência artificial no cinema.
Cairnes também afirmou que o uso da IA não significou que um artista deixou de ser contratado, citando o nome do ilustrador Lukas Ketner como o responsável por realizar a maior parte dos gráficos do filme - o site oficial do artista não lista essa colaboração, embora ele seja parceiro do astro de Entrevista com o Demônio, David Dastmalchian, em outro projeto (a história em quadrinhos Count Crowley).
“Nós demos empregos para muitas pessoas, muito talentosas, que trabalharam duro porque amavam a ideia deste filme - e que, com certeza, vão voltar a colaborar conosco no próximo que fizermos. Também fomos honestos sobre as três imagens que criamos, com muita edição e modificação, através da inteligência artificial”, comentou o diretor. “Não sei se faríamos isso de novo, e não só por razões éticas - é um trabalho desnecessário. Você não tem ideia de por quantas iterações passamos antes de chegar às que usamos no filme”.
E o que isso significa para o cinema?
Em sua entrevista com o Letterboxd, Colin Cairnes chegou a dizer que “a inteligência artificial está sendo usada, de uma forma ou de outra, em absolutamente todas as grandes séries e filmes que você está assistindo hoje em dia”. E ele está essencialmente correto.
Invasão Secreta, da Marvel, usou IA para fazer sua sequência de abertura. Resistência, épico sci-fi sobre os perigos da inteligência artificial, usou IA como ferramenta de captura de performance. A Warner vai recriar a voz da lendária cantora Edith Piaf em uma nova cinebiografia usando a IA. Cidade de Deus vai ser restaurado para um relançamento nos cinemas com a ajuda da IA. E esses são só os casos assumidos - dentro dos armários hollywoodianos, todo mundo sabe que a inteligência artificial é uma ferramenta utilizada para preencher etapas de pré e pós-produção, prever resultados comerciais, e por aí vai.
As greves simultâneas dos roteiristas e atores, que abalaram Hollywood no segundo semestre do ano passado, buscavam proteger os direitos trabalhistas dos profissionais que representavam diante dessa nova realidade. Milhares de outros trabalhadores do cinema e de dezenas de outras áreas, no entanto, continuam tendo que lidar com o uso desregulado da IA no ambiente de trabalho. É tênue a linha entre a inteligência artificial como ferramenta de facilitação da rotina, até como parte intencional de um processo criativo, e o abuso dessa ferramenta para cortar custos e precarizar funções.
No grande contexto das coisas, portanto, me parece que Entrevista com o Demônio é peixe pequeno - e, ainda além disso, que os Cairnes utilizaram a inteligência artificial como ponto de partida para um processo criativo que absolutamente não deve ser creditado a ela. Enquanto o humano continuar no banco do motorista, e a arte tomar precedência ao comércio, me parece que tatear essa linha da IA no mundo da criatividade é inevitável e, se quisermos um dia entender como ela se integra aos nossos processos, até necessário.