Fale Comigo, Sia e M3GAN (Reprodução/Montagem Omelete)

Créditos da imagem: Fale Comigo, Sia e M3GAN (Reprodução/Montagem Omelete)

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Fale Comigo e M3GAN avisam: a Sia não vai te salvar

Dois hits do terror de 2023 usam a cantora para falar da nossa relação com a cultura pop

Omelete
4 min de leitura
21.08.2023, às 17H02.

Filmes de terror têm à sua disposição todo um leque de recursos para passar ao espectador uma falsa sensação de segurança antes de lançá-lo diretamente na direção do pesadelo da vez - e, normalmente, uma simples espiadela no dia a dia idílico da família protagonista, prestes a ser assombrada por algum demônio, fantasma ou entidade assassina, é mais do que o bastante. Que curioso, portanto, que dois dos maiores hits do gênero em 2023 tenham lançado mão da mesmíssima coisa para aplicar esse truque: o catálogo de canções épicas e empoderadoras da cantora australiana Sia.

Tão curioso, inclusive, que talvez revele algo de mais profundo no texto desses dois filmes, os excelentes M3GAN e Fale Comigo. No primeiro, lançado nos cinemas lá em janeiro e abraçado pelo público ao tom de US$ 179 milhões nas bilheterias mundiais, a própria boneca do título é quem entoa “Titanium”, hit de Sia em parceria com David Guetta, na tentativa de acalmar os ânimos da pequena Cady (Violet McGraw), que acabou de perder os pais. Naturalmente, ouvir de sua nova melhor amiga versos como vocês atiram em mim/ mas eu não vou cair/ sou feita de titânio faz maravilhas pelo senso de resiliência da jovem.

Já em Fale Comigo - que já se aproxima dos US$ 50 milhões de bilheteria ao redor do mundo, mesmo com poucos dias de lançamento na maioria dos mercados -, nossa protagonista Mia (Sophie Wilde) dá uma carona para Riley (Joe Bird), o irmão de sua melhor amiga. No carro, horas antes de decidirem participar de uma sessão espírita que vai mudar suas vidas, eles berram o refrão de “Chandelier” a plenos pulmões até serem interrompidos pelo aparecimento de um animal morto na estrada. 

Sempre foi meio bizarro que essa canção, que descreve uma recaída de alcoolismo, tenha se tornado o maior sucesso solo de Sia e um dos estandartes definitivos do pop ocidental nos anos 2010. No contexto de Fale Comigo, especificamente, escolher “Chandelier” pode ser lido como um comentário fácil acerca dos excessos que os jovens no centro da trama cometem diante da necessidade de se provarem corajosos, e interessantes, e bem-humorados (naquele tom cínico e autoconsciente da geração-Z) para seus colegas. Mas esse é um filme esperto demais para deixar tudo assim, na superfície.

Como o próprio título indica, Fale Comigo é a história de um grupo de adolescentes guiados por intensa, até desesperada, necessidade de comunicação - e essa comunicação é barrada pelos códigos autoirônicos e desafetados que caracterizam os seus círculos sociais, e se infiltram até em suas relações familiares. Nesse sentido, a cantoria ao som de “Chandelier” não é tão diferente da aparição de “Titanium” em M3GAN: ambas servem para mostrar que a catarse pela cultura pop, embora seja uma medida paliativa tão boa quanto qualquer outra em momentos de angústia, não substitui o trabalho duro de encarar seus sentimentos aqui, no mundo real.

Esse é todo o ponto de M3GAN, na verdade. A boneca biônica que Gemma (Allison Williams) inventa para sua sobrinha enlutada, guiada pelo código de sua inteligência artificial, lança mão de generalizações e chavões culturais que até servem para aplacar a criança, mas não dão a ela a sensação de amparo e compreensão que só uma conexão humana pode trazer. E se os grandes filmes de terror são aqueles que encontram e acionam o nervo das maiores ansiedades contemporâneas ao seu lançamento, fica a pergunta: há algo mais urgente na nossa era obcecada por mídia e autorreferência do que estabelecer fronteiras sólidas entre o real e o artificial?

É fascinante que ambos os longas tenham escolhido Sia para ilustrar essa distinção. A inesperada ascensão da australiana ao mainstream, após anos em relativa obscuridade, levou sua marca de música pop confessional a ser cooptada pelo teatro da indústria fonográfica (vide o seu último álbum, This is Acting, todo composto por canções que ela escreveu para outros artistas). É uma história que carrega, até mesmo na insistência da popstar em usar perucas que escondiam seu rosto, as marcas contraditórias de uma era na qual “autenticidade fabricada” é a frase-chave para entender o discurso da cultura pop.

Mas não se trata, é claro, de diminuir a arte dessas composições, ou a verdade que elas carregavam para a artista no momento em que foram criadas. M3GAN e Fale Comigo questionam não a integridade de Sia, a cantora, mas quão saudável é o nosso relacionamento com os artefatos culturais aos quais nos apegamos como substitutos para uma boa e saudável conversa.

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