O nome Zack Snyder automaticamente traz associações com HQs. De 2006 até 2021, ele dedicou sua carreira à adaptar quadrinhos como 300, Watchmen e também outras obras da DC. Mas lá em 2004, o cineasta estava prestes a lançar sua carreira com um filme de zumbis: Madrugada dos Mortos, que chegava aos cinemas brasileiros em 23 de abril daquele ano.
Até aquele ponto, Snyder havia construído um currículo comandando comerciais de sucesso e videoclipes de astros como ZZ Top, Rod Stewart e Morrissey, mas nunca havia dirigido um longa-metragem antes. No começo dos anos 2000, o cineasta mirou alto na tentativa de emplacar seu nome, e assumiu a tarefa de refazer O Despertar dos Mortos (1978), discutivelmente o clássico absoluto dos filmes de zumbi de George A. Romero, o pai do gênero.
Snyder ocupou o posto de diretor no projeto, que tinha roteiro de um cineasta amador, cujo único sucesso no currículo havia sido o live-action de Scooby-Doo, chamado James Gunn. Dois novatos reimaginando uma obra-prima é a receita certa para o fracasso, certo? Errado. Na época, Madrugada dos Mortos foi um sucesso de crítica e público, chegando na casa dos US$ 100 milhões na bilheteria mundial, e lançando a carreira de Snyder e Gunn. Hoje, o filme merece ser revisitado e apreciado pela obra intensa e divertida que é.
Reimaginando um clássico
O grande desafio do remake era atender a grandeza do original. Em 1978, Romero imaginou O Despertar dos Mortos não só como uma sequência à Noite dos Mortos-Vivos (1968), mas também como uma crítica sangrenta e bem humorada ao consumismo e à violência desnecessária da Guerra do Vietnã. Há doses exageradas de acidez na premissa de um shopping-center - estabelecimentos que lentamente tomavam os Estados Unidos no fim dos anos 1970 - repleto de zumbis, com as criaturas infestando os corredores não por vontade própria, mas sim por um instinto ilógico. O filme de Romero deixa seus comentários bastante óbvios, e se constrói a partir de um grupo de personagens que até atingem um grau de normalidade enquanto refugiados dentro do local, mas que logo percebem que essa noção de segurança é apenas uma farsa quando há morte e sofrimento do lado de fora.
Nas mãos de Romero, os zumbis são ferramentas de comentário social. Mas, nas décadas que sucederam O Despertar dos Mortos, as criaturas foram moldadas por uma onda de filmes apelativos, ao ponto da saturação ao final dos anos 1980. No começo dos anos 2000, os mortos-vivos passaram por um revival graças a Extermínio (2002), de Danny Boyle, que soprou vida nova ao subgênero ao misturar o terror com toques de ação. O filme de Snyder surge no mesmo contexto.
Enquanto o clássico de Romero toma o tempo para estabelecer seu universo e disparar algumas cutucadas na mídia e na cultura de armas dos Estados Unidos, o filme de Zack Snyder já mergulha de cabeça no caos. Nos primeiros 10 minutos, o público é apresentado à enfermeira Ana (Sarah Polley) que, ao voltar para casa depois de um expediente cansativo, é atacada por sua filha zumbificada, perde o marido, e é forçada a fugir de casa enquanto toda sua vizinhança sucumbe ao vírus. É um começo bastante intenso e sangrento, e demonstra bem o que o cineasta atinge no restante do longa: muita ação e espetáculo visual de qualidade.
É possível dizer que Madrugada dos Mortos é mais raso que Despertar dos Mortos. Enquanto o filme de Snyder reflete a sensibilidade dos EUA pós-11 de Setembro, o filme é muito mais focado na ação do que em qualquer discussão. Essa diferença, inclusive, foi notada pelo próprio Romero que, ao assistir o remake de sua obra, elogiou bastante a introdução, mas também falou da falta de substância do projeto: “É melhor do que eu esperava, achei um ótimo filme de ação. Os primeiros 15 ou 20 minutos são incríveis, mas depois perde a sua razão para existir. É quase como um videogame. Não tenho medo de coisas correndo até mim, como em Space Invaders. Não tem nada acontecendo de subtexto”, falou o diretor em entrevista com o ator Simon Pegg (Todo Mundo Quase Morto), em 2005.
Enquanto é uma crítica bem válida, não diminui o impacto do filme. Aliás, o grande trunfo aqui é uma obra capaz de usar bem a premissa e ambientação do original, mas criar algo completamente novo e diferente, compatível com os gostos do público da época, que buscava por filmes mais dinâmicos e violentos. Madrugada dos Mortos entrega em tudo isso, com seus zumbis velocistas, gore de primeira qualidade e um gosto pela apelação, como mostrar um bebê zumbificado. Mas também há picos de bom humor, por exemplo, uma montagem que mostra como os sobreviventes se divertem no shopping vazio, acompanhada de uma versão de jazz de “Down With the Sickness”, do Disturbed.
Legado sangrento
Em retrospecto, Madrugada dos Mortos é um dos filmes mais emblemáticos das obras de mortos-vivos dos anos 2000. Seu foco na ação, na sobrevivência, e na tensão paranóica entre os refugiados, ajudaram a moldar muito da imagem do subgênero nos anos seguintes, especialmente para os videogames, com títulos como Dead Rising e Left 4 Dead bebendo diretamente da sua fonte.
Agora, 17 anos depois, é especialmente bom revisitá-lo para perceber como o estilo de Zack Snyder - e também de James Gunn - já mostrava as caras. No caso do roteirista, é impossível não associar muito do sarcasmo com o que lhe daria fama em Guardiões da Galáxia. Já para o diretor, que ensaia um retorno ao subgênero em Army of the Dead, é possível ver o apego ao espetáculo visual, as cenas em slow motion e, claro, algum tipo de conexão com temática religiosa. Em uma das maiores homenagens à O Despertar dos Mortos, Snyder recontextualiza o slogan do original. Dessa vez, Ken Foree - que viveu o sobrevivente Peter no clássico de 1978 - aparece na televisão como um televangelista, que acredita que o apocalipse zumbi é uma espécie de juízo final, trazido pela depravação da sociedade. Em tom sério, o pastor solta quase como uma maldição: “Quando não houver mais lugar no Inferno, os mortos tomarão a Terra”.
Madrugada dos Mortos está disponível para streaming no Amazon Prime Video e no Telecine, e também em Blu-ray na FAMDVD. Army of The Dead: Invasão em Las Vegas, novo filme de zumbis de Zack Snyder, chega à Netflix em 21 de maio.