É impossível traçar o panorama do cinema hollywoodiano atual sem dar créditos a X-Men (2000) e X-Men 2 (2003). Os filmes de Bryan Singer, ao lado da trilogia Homem-Aranha de Sam Raimi, pavimentaram o caminho para que os estúdios entendessem o apelo comercial das adaptações de quadrinhos e para que o Universo Cinematográfico da Marvel (MCU) se erguesse. Só que, dado o devido crédito, esses dois longas precursores não são inoxidáveis. Em termos narrativos, já ficaram muito para trás da mistura de gêneros e conceitos que o público moderno aprendeu a digerir com filmes como Capitão América: O Soldado Invernal, Guardiões da Galáxia, Thor: Ragnarok e até Batman: O Cavaleiros das Trevas (para também citar a DC). Encerrada de vez em 2019, com a aquisição da 20th Century Fox pela Walt Disney Company, a desbravadora franquia mutante que vimos nascer no início do milênio talvez tivesse tido vida mais longa (ou ao menos mais proveitosa) se tivesse acompanhado a modernização que ela mesma abriu caminho para acontecer; se tivesse entendido a lição ensinada pelo excelente X-Men: Primeira Classe, há exatos 10 anos.
Pensado para resgatar a boa vontade do público com a franquia mutante, depois das bombas que foram X-Men: O Confronto Final (2006) e X-Men Origens: Wolverine (2009), o filme voltou no tempo para contar em detalhes a origem da dinâmica de rivalidade e respeito entre Charles Xavier, o Professor X, e Erik Lehnsherr, o Magneto. Investindo na segurança do que já era conhecido na hora de desenvolver a história, a Fox recorreu mais uma vez a Bryan Singer, que havia abdicado da direção de Confronto Final (sendo substituído por Brett Ratner para poder dirigir Superman: O Retorno) e atuado apenas como produtor em Wolverine.
Após definir Xavier e Magneto como o coração da trama, Singer a situou nos anos 1960 e escolheu a Crise dos Mísseis de Cuba como um evento histórico da Guerra Fria que ajudaria a ancorar tudo na realidade. Apoiado no trabalho do roteirista Sheldon Turner para um filme sobre Erik Lehnsherr que nunca aconteceu (inspiração que Singer nega, mas o sindicato dos roteiristas credita a Turner oficialmente), o diretor de X-Men e X-Men 2 ainda adicionou toda uma sub-trama envolvendo o período do mutante magnético em um campo de concentração nazista e sua busca por vingança.
Só que, próximo ao início das filmagens, em 2010, Singer optou mais uma vez por não dirigir um filme da franquia mutante em nome de um projeto pessoal, Jack, o Matador de Gigantes (2013), e assumiu mais uma vez o papel de produtor. Coube ao colega de cargo e roteirista, Simon Kinberg, buscar um substituto. E ele logo se interessou pelo diretor da elogiada adaptação da HQ Kick-Ass, de Mark Millar: Matthew Vaughn.
Vaughn assumiu o projeto e fez mais do que só dirigi-lo. Entendendo a oportunidade como a chance de fazer "um filme dos X-Men, uma história estilo James Bond e um thriller político ao estilo [do diretor de cinema John] Frankenheimer, tudo ao mesmo tempo", ele reescreveu o roteiro ao lado de Jane Goldman, adicionando mais personagens, humor e elementos históricos dos anos 1960. Quanto a reiniciar ou não a história mutante das telonas, ele optou por deixar o caminho aberto para os dois lados: adicionou referências aos filmes originais, como uma participação do Wolverine (Hugh Jackman) e recriou outras narrativas (como a história familiar de Xavier).
Ancorado em atuações brilhantes de James McAvoy como Charles Xavier, Michael Fassbender como Magneto, e Kevin Bacon como o vilão Sebastian Shaw, o filme ainda trouxe às telas uma nova versão para a história de Mística, vivida por Jennifer Lawrence. Além disso, a origem de Hank McCoy como o Fera (Nicholas Hoult) e a introdução de personagens dos quadrinhos que há muito mereciam um espaço nos filmes, como Moira McTaggert (Rose Byrne), Emma Frost (January Jones) e Destrutor (Lucas Till), não só funcionaram como deixaram no público a vontade de ver mais daquela nova continuidade. Era o testamento da eficiência em unir um conceito trabalhado por alguém que entendia o universo criado para os mutantes no cinema, Singer, com o frescor e a criatividade de um diretor com ideias novas e vontade de ousar, Vaughn.
O resultado foi o sucesso de público e crítica, garantindo ao filme 86% de aprovação no agregador de avaliações Rotten Tomatoes e mais de US$350 milhões em bilheteria, frente a um orçamento de US$140 milhões. Na mão de Matthew Vaughn, Primeira Classe conseguiu dar um largo passo à frente no entendimento do que faz uma história de super-heróis ser "cool" nas telonas. O humor mais seco, a autoconsciência e o equilíbrio entre momentos de leveza e cenas em que o filme precisa se levar mais a sério (como a emocionante interação em que Xavier ajuda Magneto a acessar seu verdadeiro poder graças à memória de suas raízes judaicas) são todos elementos que, até então, não haviam aparecido na franquia mutante; sinais de modernidade.
Mais do que tudo isso, foi graças a Primeira Classe que a 20th Century Fox ganhou a chance de mexer com universos alternativos, realidades paralelas e reescrever o cânone das suas histórias para apagar da continuidade fracassos como os de O Confronto Final e Wolverine; justamente o que foi feito com X-Men: Dias de um Futuro Esquecido (2014).
Com roteiro escrito por Simon Kinberg em cima de uma história desenvolvida em parceria com Vaughn e Goldman, o filme teria marcado o retorno do diretor de Primeira Classe sob, mais uma vez, a produção e orientação de Singer, que por sua vez assumiria um papel de patrono do universo compartilhado não tão distante do que sabemos que Kevin Feige já fazia no MCU. A ideia seria se apoiar em um dos mais memoráveis arcos dos quadrinhos, envolvendo viagem temporal e o conceito de reescrever a história, para unificar os universos vistos nos filmes anteriores. Só que algo não correu tão certo.
Vaughn decidiu deixar a direção do filme para focar em outra adaptação dos quadrinhos de Mark Millar, Kinsgman: O Serviço Secreto, e Singer ganhou uma nova chance de dirigir a franquia mutante para o cinema, retrabalhando a história para se encaixar no tom e nos planos que ele tinha para aquele universo.
Reunindo Patrick Stewart e James McAvoy como Charles Xavier, Ian McKellen e Michael Fassbender como Magneto e trazendo de volta Hugh Jackman, Jennifer Lawrence, Nicholas Hoult, sem falar em mais atores dos filmes do início dos anos 2000, Dias de Um Futuro Esquecido chegou às telonas fazendo US$746 milhões com um orçamento de US$220 milhões. Bryan Singer estava de volta ao topo, mas a que custo?
A verdade é que o sucesso comercial disfarçou como Singer e Kinberg começaram um processo de reciclagem do que já haviam feito em X-Men e X-Men 2, mais de uma década atrás: Wolverine protagonista, Mística femme fatale, Magneto vilão, Charles conciliador. Depois de um momento de respiro com uma história mais minimalista e centrada no desenvolvimentos dos personagens, em Primeira Classe, o status quo voltava a ser mais do mesmo, regredindo a uma forma de contar histórias que já tinha se provado obsoleta. Claro, se isso fosse apenas em nome da despedida da "velha guarda" dos filmes mutantes, faria sentido, mas a realidade é que era mais um sinal das limitações que essa equipe criativa encontrava em um mundo pós-MCU; algo que fica difícil de negar quando se encara o trabalho de Singer e Kinberg, agora sem qualquer participação de Matthew Vaughn e Jane Goldman, em X-Men: Apocalipse (2016).
Incumbida de realmente introduzir uma nova geração dos mutantes clássicos da franquia, usando como base aquela apresentada em Primeira Classe, a dupla patinou a ponto de conseguir estragar um dos arcos mais importantes dos quadrinhos, reduzindo o vilão mais poderoso dos mutantes a um bonecão azul inexpressivo de motivações palpáveis ou uma personalidade crível (pobre Oscar Isaac). Para piorar, é um filme desprovido de humor, de surpresa e de qualquer profundidade no desenvolvimento dos personagens que apresenta; justamente o oposto de tudo que funcionou no filme de 2011, dirigido por Matthew Vaughn.
Kinberg ainda tentou resgatar alguma credibilidade da franquia escrevendo e dirigindo X-Men: Fênix Negra (2019), mas só conseguiu entregar a segunda adaptação medíocre em menos de 20 anos sobre a entidade que possui a mutante Jean Grey. Um filme totalmente esquecível, que conseguiu ofuscar até os talentos de Fassbender e McAvoy no meio de tanta falta de carisma, sem falar no quanto saturou a imagem de Lawrence e sua versão de Mística. A colaboração entre mentes criativas do passado e do presente em nome do futuro dos mutantes no cinema, que deu tão certo na hora de resgatar a franquia em Primeira Classe, foi definitivamente esquecida. E levou com ela a própria saga, que morreu sem causar grande chateação.
Não há prova maior de como os X-Men poderiam ter encontrado fôlego renovado na 20th Century Fox se entregues nas mãos de equipes diversas do que o sucesso de Deadpool (2016) e Logan (2017). Indiretamente bebendo de onde bebeu Primeira Classe, as equipes por trás desses projetos entenderam que os personagens tirados dos quadrinhos poderiam ser usados para contar uma história de comédia escrachada para maiores, ou um drama denso sobre a possibilidade de redenção, ou um filme ao estilo James Bond sobre tensões políticas e sociais na Guerra Fria. Faltou que Singer, Kinberg e a própria Fox entendessem isso em relação a Xavier, Magneto e o restante do grupo principal da saga, deixando de lado a reciclagem do mesmo conflito ideológico e temático no estilo "Luther King vs. Malcolm X".
Já o público, que entendeu tudo isso não só com Primeira Classe, mas com os mais de 20 filmes do MCU e um ou outro filme que deu certo do Universo Estendido da DC, deixou de engolir mais do mesmo. Os fãs tiveram um gosto de modernidade e qualidade como não teriam mais em uma franquia inteira que será lembrada eternamente como essencial, mas obsoleta. Revisitada mais por nostalgia do que por reverência. Ou por curiosidade histórica.
X-Men: Primeira Classe completa 10 anos ainda parecendo jovem, atual e digno de ser assistido novamente pela qualidade que carrega como filme. Só é uma pena que isso sirva e servirá para sempre como uma lembrança do momento em que a franquia mutante, que abriu caminho para o futuro do cinema de entretenimento, escolheu voltar ao passado e morrer uma morte tosca, tendo só vislumbrado a possibilidade de se reinventar.