Depois de um longo período de pré-produção, um tempo ainda mais longo na gaveta da Fox e mais um tempo de espera por causa do novo coronavírus, Os Novos Mutantes chegou aos cinemas na última quinta-feira (22). O filme se vende como “terror teen” dentro da franquia X-Men, apoiando-se em atores e atrizes de Stranger Things, A Bruxa, 13 Reasons Why e Game of Thrones, sob comando do diretor de A Culpa É das Estrelas, Josh Boone.
O filme se baseia numa série que tem quase 40 anos no universo dos X-Men nos quadrinhos. Os Novos Mutantes foram o primeiríssimo spin-off da franquia X na Marvel Comics, quando o Professor X recebeu uma turma inteira de novos adolescentes na sua Escola para Jovens Superdotados. De 1983 para cá, a equipe teve bons momentos e longos períodos sumida, mas é querida de muitos fãs.
Como a maioria dos filmes de heróis, Os Novos Mutantes preserva vários elementos dos quadrinhos em que se inspirou, mas se desvia em outros (e alguns desvios são polêmicos). Para quem está conhecendo a equipe agora e ouvindo um e outro comentário sobre como ela é nos quadrinhos, as perguntas e respostas abaixo explicam o básico da trajetória dos adolescentes mutantes nas HQs. Confira:
Foi o primeiro spin-off dos X-Men?
Sim, foi a primeira série derivada dos X-Men nas HQs. Hoje é difícil de acreditar, mas já houve época em que X-Men não era uma linha da Marvel, mas apenas uma série mensal. E uma série de sucesso enorme. O roteirista Chris Claremont e a editora Louise Simonson queriam que continuasse sendo só uma, pois era mais fácil manter a qualidade. Só que o editor-chefe Jim Shooter queria spin-offs e deu o ultimato: “Ou vocês fazem ou alguém faz”. Claremont e Simonson foram mexer nos seus arquivos e acharam uma ideia antiga, de que a escola do Professor Xavier podia voltar a ter alunos adolescentes… A equipe estreou numa graphic novel com desenhos de Bob McLeod.
Os Novos Mutantes surgiram por que os X-Men morreram?
Sim, só que não. Durante a longa “Saga da Ninhada” (1982-1983), os X-Men sumiram no espaço e, sem chance de contato, o Professor X achou que eles tinham morrido. A geneticista Moira MacTaggert, colega do Professor, tentou convencê-lo a treinar uma nova equipe – e já chegou com uma recruta, a escocesa Rahne Sinclair. Na mesma época, outros adolescentes despertaram poderes mutantes e foram detectados pelo Professor. Charles Xavier demorou a se convencer, mas montou a nova equipe de jovens.
A equipe dos quadrinhos é a mesma do filme?
Praticamente sim. A equipe original das HQs também tinha cinco integrantes, mas o filme troca Karma (a vietnamita Xian Coy Mahn) por Magia (a russa Illyanna Rasputin), que só entrou na série no segundo ano. Veja que, ao criar os personagens, Chris Claremont repetiu a fórmula que havia funcionado de modo espetacular na revitalização dos X-Men nos anos 1970: personagens de várias procedências e personalidades marcantes. Míssil (Sam Guthrie) é um caipira do Kentucky que, apesar de mais velho da turma, é o mais inseguro. Lupina (Rahne Sinclair), a mais jovem, é uma menina católica que foi perseguida pela própria igreja no interior da Escócia como cria do demo. Miragem (Danielle Moonstar, que no início usava o codinome Psiquê) é uma indígena cheyenne de gênio forte que bate de frente com Professor X. Mancha Solar (Roberto da Costa) vem da elite brasileira e é a autoconfiança em pessoa. Illyanna, por sua vez, já tinha aparecido na série dos X-Men como irmã de Colossus, mas ganhou outro nível quando foi raptada por uma dimensão demoníaca e passou sete anos (segundos, na nossa dimensão) por lá.
A equipe tinha mais meninas do que meninos?
Tinha. Isto era revolucionário quando a equipe estreou, em 1983, e ainda hoje foge do usual. É uma tendência que mais ou menos se manteve ao longo do histórico da equipe e das suas várias versões. O time só virou fortemente masculino na fase Rob Liefeld, da qual tratamos à frente. A versão atual estreou em 2019 com quatro meninos e quatro meninas.
O personagem brasileiro não era negro?
Era, nos quadrinhos. Roberto da Costa, o Mancha Solar, é filho de um rico empresário brasileiro negro com uma mãe norte-americana branca. Sua cena de estreia, aliás, é durante um jogo de futebol mirim no “Rio de Janiero” (sic), quando seus poderes se manifestam. O ator que o interpreta no filme, Henry Zaga, é brasileiro, mas branco de pais brancos. A decisão do elenco gerou alguma controvérsia na internet, como era de se esperar. Curiosamente, outra personagem negra dos quadrinhos, Cecilia Reyes (que, nos gibis, nunca teve nada a ver com os Novos Mutantes), também é interpretada por uma atriz brasileira branca, Alice Braga.
Rahne Sinclair (Lupina) e Danielle Moonstar (Miragem) formavam um casal nos quadrinhos?
Não. As duas personagens tinham uma conexão telepática quando Rahne se transformava em loba ou meio-loba, meio-humana. Segundo declarações do diretor Josh Boone, o filme manteve esta conexão e transformou em relação – criando o primeiro casal homossexual dos filmes Marvel. Curiosamente, a personagem Karma – que não está no filme, mas é da formação original – é lésbica, ou assim se declarou mais de 20 anos após sua estreia nas HQs. A equipe teve outros integrantes gays ao longo dos anos, como Shatterstar e Rictor – protagonistas do primeiro beijo homossexual na história da Marvel, em 2009.
Os uniformes do filme são os mesmos da HQ?
Não. Na verdade, os trailers e imagens de divulgação não mostram ninguém de uniforme. Nos quadrinhos, os Novos Mutantes usavam os mesmos trajes preto e amarelo que os X-Men usavam lá no começo dos anos 1960, mas sem máscaras. Porém, as imagens de divulgação sugerem que o figurino do filme segue algumas preferências de “trajes civis” das personagens, como as camisas xadrez de Danielle Moonstar e os blusões até os dedos de Rahne Sinclair. As meias calças rasgadas e roupas justas de Illyanna Rasputin, porém, são trajes que, nas HQs, a personagem só adotou depois dos anos 2000.
O filme se diz de terror. O gibi era de terror?
Não exatamente, mas quase. O caso foi que Novos Mutantes, o gibi, passou por uma mudança gritante no segundo ano com a entrada do artista Bill Sienkiewicz (leia sin-que-vitch). Sienkiewicz tinha um traço expressionista que bebia mais nos desenhos de artistas plásticos como Basquiat do que nos gibis da época. Ele também fazia capas pintadas, com recortes e colagens, o que não se fazia na época. A partir do estilo do novo desenhista, Claremont tendeu para histórias um pouquinho mais macabras. A primeira que Sienkiewicz desenhou é a mais famosa: “A Saga do Urso Demônio”. Segundo os trailers, é uma das inspirações do filme.
Novos Mutantes também teve longas fases mais voltadas para fantasia – com viagens a Asgard, civilizações perdidas na Amazônia e várias passagens pelo inferno. Também incorporou elementos sci-fi, como o integrante alienígena Warlock e Lila Cheney, a mutante roqueira de sucesso interdimensional que foi namorada de Míssil.
Que história é essa de Urso Demônio ou Urso Místico?
Desde a edição 3 de New Mutants, a personagem Danielle Moonstar era assombrada pela figura de um urso. Como típico subplot arrastado de Chris Claremont, o urso fez várias aparições enigmáticas por mais de um ano, até que Danielle – com arco, flecha e pintura de guerra cheyenne – resolveu encará-lo de frente no meio de uma nevasca em New Mutants n. 18. Ela quase morre. Seus colegas de equipe saem atrás do demônio, criatura mística que tem sua própria dimensão, que matou os pais de Danielle e que se apresenta como um urso gigantesco. O vilão foi derrotado pela equipe – cortado ao meio pela espada mística de Magia – e voltou poucas vezes para incomodar Novos ou outros mutantes da Marvel.
Então era uma série um tantinho macabra, né?
Era. Apesar de adolescentes, os Novos Mutantes estavam sempre correndo riscos de adultos. Karma, a heroína vietnamita que não está no filme, morreu já na edição 6. (Mas voltou, claro.) Mais tarde, outro herói, Cifra, tem uma morte quase banal durante um tiroteio com vilões – e Warlock, o herói alienígena, passou uma edição inteira passeando com o cadáver do colega, sem entender o conceito de morte. Quando a equipe enfrenta o Beyonder, todos são assassinados pelo vilão com poderes divinos – que logo depois os revive, mas traumatizados pela morte sumária. Há também uma edição famosa que trata de bullying e suicídio na adolescência – um garoto mutante que se mata depois de uma brincadeira de colegas preconceituosos.
É verdade que Rob Liefeld acabou com os Novos Mutantes?
Dá para dizer que sim. Liefeld, na época com 22 anos, assumiu os desenhos da série dos Novos Mutantes na edição 86, criou uma série de personagens – como Cable e Deadpool – e fez a série se encerrar na edição 100, só para renascer em seguida como X-Force. Apesar de continuar com heróis adolescentes, a X-Force tinha um tom mais paramilitar e gerou sua própria subfranquia no universo dos X-Men. O título Novos Mutantes passou mais de dez anos sem uso na Marvel.
Foi uma série só dos anos 1980?
Não. A série original durou de 1983 a 1991 e é a mais consagrada. Em 2003, a Marvel ressuscitou o título com uma equipe inédita de jovens mutantes – que tinham Danielle Moonstar como instrutora – numa série de curta duração (convertida em uma série parecida e mais longa, New X-Men: Academy X, inédita no Brasil). Em 2009, a série voltou com equipe quase idêntica à original (Míssil, Karma, Mancha Solar, Miragem, Magma e Magia) e teve bons anos com boa recepção dos fãs. A série mais recente dos Novos Mutantes estreou nos EUA em 2019 com desenhos do brasileiro Rod Reis, também traz quase toda a equipe original e faz parte da reformulação da linha mutante promovida pelo escritor Jonathan Hickman. Deve chegar ao Brasil este ano.
Houve outros integrantes além destes do filme?
Claro. Vários. Karma, Cifra e Warlock, citados acima, participaram de várias versões da equipe. Magma, que vinha de uma civilização romana perdida na selva amazônica, também. Kitty Pryde foi “rebaixada” dos X-Men aos Novos Mutantes devido à sua idade, e odiou. Na primeira fase, ainda houve Dinamite, Rusty Collins, Rictor e Skids. Na infame fase Liefeld (veja acima), entraram Cable, Dominó, Feral, Shatterstar e Apache. Na reformulação de 2003, a equipe era composta por Decompositor, Elixir, Ícaro, Prodígio, Faísca, Feromona, Renascença, Ventania e a wolverina X-23. A série atual estreou com Magia, Mancha Solar, Lupina, Cifra, Miragem, Karma, Mondo e Câmara, mas se abre para vários mutantes adolescentes.
Quando se forma, um Novo Mutante vira X-Men?
Não necessariamente. Aliás, Míssil foi o único dos integrantes originais que passou formalmente pela “formatura” e integrou os X-Men. Ao longo dos anos, porém, todos Novos Mutantes já foram de uma ou outra formação dos X-Men… ou da X-Force… ou do X-Factor… ou da Excalibur… ou da Geração X… Time com X é o que não falta e ninguém tem que pagar passe. Míssil e Mancha Solar tiveram participação muito importante nos Vingadores em anos recentes, e o herói brasileiro pode ganhar mais importância no Universo Marvel em sagas por vir.
Mas afinal, era um gibi bom?
Tinha seus altos e baixos. Vale ler os altos. Procure “A Saga do Urso Demônio” em Os Novos Mutantes: Entre a Luz e a Escuridão (Panini, 2017) ou no n. 99 da coleção Marvel Salvat vermelha (2019). Este último álbum também trouxe a primeiríssima história dos Novos Mutantes, que passou quase quarenta anos inédita no Brasil. Também há boas histórias da primeira equipe em X-Men: Inferno (Panini, 2018). Da terceira fase da equipe, a que atraiu boas críticas, você tem que caçar entre as edições 101 e 144 de X-Men Extra (Panini, 2010-2013). Mas se você quiser mesmo fuçar nos sebos, duas das histórias mais legais da série são a das “Guerras Asgardianas” – que só saiu aqui em X-Men n. 22 (Abril, 1990) – e “Era só brincadeirinha”, sobre suicídio na adolescência – em O Incrível Hulk n. 95 (Abril, 1991).