A origem da série Power Rangers é bastante conhecida entre as pessoas. Muitos já sabem que a Saban, em parceria com a Bandai, desejava trazer as séries super sentai japonesas para os Estados Unidos, e a saída foi reaproveitar todas as cenas em que os heróis estavam lutando com uniforme e mesclá-las com cenas inéditas gravadas com atores americanos. Mas o que menos gente sabia era que esse mesmo processo quase aconteceu… com Sailor Moon!
Sailor Moon é, atualmente, o maior expoente dos shoujos de todos os tempos, e em meados dos anos 1990 pensaram numa forma de vender os brinquedos da franquia para os americanos. O tal piloto nunca foi aprovado, mas se tornou uma lenda entre os fãs de anime por ser bem diferente, misturando atores reais com uma animação que tinha até mesmo uma PCD como Sailor. Essa é a história de “Saban Moon”, a série que nunca existiu e foi recentemente encontrada por uma fã muito engajada.
O nascimento da lenda urbana
A série americana de Sailor Moon não é necessariamente uma novidade para otakus mais antigos. Quem habitou fóruns de discussão no começo do movimento otaku nos anos 2000 provavelmente foi exposto a um vídeo no YouTube de uma gravação amadora durante um painel no evento Anime Expo. Nesse vídeo, na verdade um clipe musical com a música de abertura, eram exibidas cenas dessa versão americana de Sailor Moon em meio a gargalhadas do público presente.
O clipe misturava atrizes reais, com interpretação digna de jogo de Sega CD, e lutas animadas em 2D trazendo uma movimentação condizente com desenhos animados de uma década atrás. Motivos para as risadas não faltam, afinal tudo ali gritava baixo orçamento. Muitas mudanças foram feitas no material original, a Luna agora é um gato branco, a Sailor Moon perdeu seu penteado característico e uma das sailors agora usa cadeira de rodas. Ao final do clipe, as versões civis das heroínas performam uma coreografia digna de “Let’s Go To The Mall” da série How I Met Your Mother e mal é possível ouvir a letra da música porque gargalhadas dos otakus no painel atrapalham o áudio.
Mas, afinal… o que era tudo isso? Pois bem, no começo dos anos 1990 a autora de mangás Naoko Takeuchi promoveu uma revolução no gênero mahou shoujo (ou garota mágica em português). Séries de heróis coloridos lutando contra monstros do dia, chamadas “super sentai”, eram muito populares entre os garotos, mas não havia nada ali de mesma importância para o público feminino. Usando como base uma história chamada Sailor V, Naoko lançou um novo mangá intitulado Sailor Moon com a história de um grupo de garotas contra as forças do mal. Poucos meses após o início da publicação foi lançado um anime produzido pela Toei Animation e o resto é história. A produção rendeu 200 episódios, trocentos brinquedos e bilhões de dólares no bolso dos produtores.
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Fazia sentido lançar aquilo fora do Japão, mas não era tão fácil assim. Hoje em dia a animação japonesa tem muito prestígio, mas no começo dos anos 1990 o cenário era outro. O estilo ocidental de desenhos, algo na linha como Caverna do Dragão e He-Man, era o padrão estético aceito pelo público, e algo mais dramático e com proporções menos reais como era comum nos animes poderia ser rejeitado pelo público. Mas quando a Saban fez sucesso adaptando as cenas do sentai Kyoryu Sentai Zyuranger para criar o seu Mighty Morphin Power Rangers, a Toei viu ali uma oportunidade para “desovar” algumas de suas séries de sucesso. Qual foi a primeira tentativa? Sailor Moon.
A estratégia parecia perfeita, pelo menos no papel. Se esse novo Sailor Moon fizesse sucesso nos EUA, seria possível reaproveitar não apenas alguns produtos em comum com o anime japonês, mas também seria possível criar novos brinquedos e ter ainda mais lucro. Animada com as possibilidades, as empresas Renaissance Atlantic e Toon Makers se reuniram para produzir um piloto dessa nova série, chamada pelos fãs de “Saban Moon” por ser o “Sailor Moon ao estilo Saban”.
Os bastidores de “Saban Moon”
Além do clipe filmado na Anime Expo, pouco se sabia sobre essa versão americana de Sailor Moon há até pouco tempo. A versão piloto ganhou um status de produção cult, e muitos fãs de Sailor Moon começaram uma busca atrás de mais informações. Alguns até conseguiram comprar acetatos usados pela Toon Makers, mas a guinada nas investigações aconteceu em 2018, quando Cecilia D'Anastasio do site Kotaku foi atrás dos produtores desse piloto rejeitado. Ao entrevistar Frank Ward, dono da Renaissance Atlantic, a jornalista descobriu os bastidores da negociação. Ward acreditava que as garotas também se interessariam por uma série com um grupo de super-heroínas, então foram atrás desse projeto que misturava atores com cenas de luta em animação 2D.
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Com o roteiro do piloto em mão, a produção se dividiu em duas frentes. Do lado live action iniciaram os testes para encontrar as cinco heroínas, e do lado da animação contrataram a Toon Makers para produzir as cenas e desenvolver uniformes e equipamentos das sailors americanas. O piloto foi produzido com orçamento bem restrito, algo comum no meio audiovisual, então a equipe de animação trabalhou durante os horários de descanso de seus empregos enquanto as gravações em estúdio reaproveitavam cenários da série Uma Galera do Barulho (exibida pelo SBT no começo dos anos 1990).
Infelizmente esse piloto se perdeu no tempo, nem mesmo Frank Ward tinha uma cópia. Para não deixar a jornalista do Kotaku de mãos abanando, o dono da Renaissance Atlantic entregou uma cópia de um outro piloto sobre garotas guerreiras, a série Teen Angel. A produção não é necessariamente inspirada na obra de Naoko Takeuchi, na verdade parece mais uma mistura de Xena - A Princesa Guerreira com elementos de super sentai, mas também nunca foi aprovada. A lenda do piloto perdido parecia um caso sem solução, foi quando surgiu a youtuber Ray Mona retomando as buscas.
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Em uma série de dois documentários (em inglês) lançados no YouTube, a produtora de conteúdo criou uma linha investigativa para encontrar e entrevistar as pessoas do projeto. Embora tenha encontrado muitos envolvidos nesse processo, ela sempre esbarrava em um beco sem saída. Quando tudo parecia perdido, Ray Mona encontrou o que procurava no lugar mais improvável possível: havia uma cópia do episódio piloto em um departamento público responsável por registros de direitos autorais. Com uma autorização escrita pelo próprio Frank Ward, Ray conseguiu uma cópia dessa lenda urbana e colocou na internet.
Com vocês, “Saban Moon”:
O episódio foi disponibilizado pela youtuber e se encontra apenas em inglês. Confira abaixo:
O piloto começa com uma cerimônia realizada no Reino Lunar para Sailor Moon selar seu compromisso com Darien, o príncipe da Terra. Porém, durante o evento surge um navio voador controlado pela Rainha Beryl e seus demônios, e assim começa uma grande batalha do bem contra o mal. Aqui já percebemos que a base do “Saban Moon” era muito parecida com a história criada por Naoko Takeuchi, afinal esses primeiros eventos estão presentes de forma semelhantes na trama original de Sailor Moon. A diferença começa agora.
Sailor Moon e suas colegas fogem do Reino Lunar em pranchas à vela (!) que voam pelo espaço (!!) e caem na Terra, e o piloto começa a ter cenas em live action a partir desse momento. Cada uma das guerreiras Sailor tem uma identidade civil e estudam juntas em um mesmo colégio feminino, mas ocasionalmente precisam se transformar em guerreiras e viajar ao espaço com o objetivo de enfrentar os monstros da Rainha Beryl em planetas do sistema solar.
Nesse episódio piloto as protagonistas interrompem uma festa do pijama para enfrentar um monstro de lava no planeta Júpiter. Curiosamente, entre os inimigos do exército da rainha Beryl estão dois rostos conhecidos dos fãs de Sailor Moon, os monstros dos episódios 30 e 31 do anime clássico, do arco dos sete cristais arco-íris. Outra coincidência com o original são os golpes, pois boa parte deles segue os gestos da versão japonesa. Ao final, Sailor Moon extermina o monstro do dia com a Tiara Lunar após ser auxiliada por um misterioso homem chamado Tuxedo Mask cujo rosto é muito parecido com o do príncipe Darien.
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Como Ray Mona descobriu em suas entrevistas, muitas decisões de roteiro tentaram adaptar Sailor Moon como se fosse Power Rangers. A começar com o elenco formado por várias etnias, com uma protagonista loira acompanhada de uma garota negra, uma asiática, uma latina e, por fim, uma cadeirante. Os roteiristas explicaram que o roteiro tinha esse viés de “politicamente correto” (termo usado por eles) para representar a maior quantidade possível de garotas, uma filosofia que os Rangers seguem até hoje. Também contaram planos para o futuro, como o fato de Darien também ter um ator humano, um aluno de uma escola masculina localizada no outro lado de um rio.
Analisando de forma crítica, aquelas risadas ao fundo do trailer exibido no Anime Expo foram injustas. Claro que tudo em “Saban Moon” parece mambembe, mas a ideia em si não é ruim e provavelmente faria sucesso se tivesse sido produzida, até por ter um carisma inexistente em outras séries da época como VR Troopers e Os Jovens Guerreiros Tatuados de Beverly Hills.
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Como o piloto de “Saban Moon” não foi aprovado, a distribuidora DIC optou por dublar o anime japonês para exibir nos EUA (com muitas alterações de roteiro, claro) e foi um grande sucesso. Com isso, novos animes foram conquistando o território americano, e a situação sobre animação de prestígio se inverteu: as crianças passaram a rejeitar as animações americanas e a privilegiar as séries japonesas, levando os desenhos animados ocidentais a emular elementos de animes (como em Avatar ou Os Jovens Titãs).
É doido pensar que se esse piloto tivesse se tornado uma série talvez o mercado de animes nos EUA (e em outros países ocidentais) tivesse tomado um rumo diferente. Como seria essa realidade alternativa em que os animes eram retrabalhados com animação tradicional americana? Algo bem mais inimaginável que uma Sailor Moon praticando windsurf no espaço, com certeza.
Como ver os documentários?
Os dois documentários da Ray Mona estão disponíveis em seu canal, infelizmente sem legenda em português. Caso tenha domínio de inglês, vale a pena para entender como foi a investigação para encontrar o episódio piloto e outras curiosidades sobre a produção: