Da desarticulação da Ancine ao abandono da Cinemateca, o cinema brasileiro vive uma situação digna dos filmes mal-assombrados. Estamos às margens do desligamento da nossa produção e do apagamento da nossa história audiovisual, e não há outra palavra para usar nesse caso que não seja “horror”.
Há muito tempo o cinema de gênero no país já percebia o mal-estar dos nossos desarranjos sociais, e se o horror dependia de José Mojica Marins para existir até o fim da Embrafilme, os últimos 20 anos viram prosperar no país autores e formatos interessantes de abordar os temas do terror nas telas. A seleção abaixo vai buscar em filmes variados - do drama existencial ao scifi quase experimental - alguns exemplos desse horror à brasileira.
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Mormaço
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Depois de três longas de caráter mais experimental ao lado do codiretor Felipe Bragança, a carioca Marina Meliande partiu para empreitada solo em 2018 neste filme que já passa a flertar mais com o cinema de gênero. A história da advogada que tenta impedir a desapropriação de moradores da Vila Autódromo (área que a prefeitura tomou para as obras da Olimpíada) ganha tons polanskianos quando ela “traz trabalho pra casa”, por assim dizer. Mormaço consegue sintetizar bem uma ideia atual de um Rio de Janeiro que se arrasta febril no desespero e no abandono.
Disponível na Netflix.
O Clube dos Canibais
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Tem certas situações no conflito de classes brasileiro que só o escracho consegue dar conta. O diretor Guto Parente enquadra o ridículo da nossa elite provinciana com um viés de horror barato, na trama de um casal cearense que recebe na sua casa à beira mar outros endinheirados para bacanais de canibalismo. Certas situações bebem na fonte da pornochanchada e talvez lembrem também as crônicas de classe média de Anna Muylaert ou os filmes de Kléber Mendonça Filho, mas Parente está mais interessado em atualizar o prazer do sadismo dos filmes de Luis Buñuel que ironizavam a burguesia.
Disponível no Telecine.
Sinfonia da Necrópole
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Cabe aos diretores Juliana Rojas e Marco Dutra levar o horror brasileiro ao circuito dos festivais prestigiados de cinema mundial, com filmes como Trabalhar Cansa e o mais recente As Boas Maneiras. O melhor filme de Rojas, porém, é esse terror musical cômico feito em empreitada solo, sobre um aprendiz de coveiro que se apaixona pela burocrata que está desapropriando o cemitério onde ele trabalha. Assim como em Mormaço, a especulação imobiliária não parece uma circunstância mas a própria lógica do dia a dia do capitalismo, e a ela só é possível responder, neste filme, com absurdo. Sinfonia da Necrópole é um grande boy-meets-girl cheio de carinho pelos afetos que resistem ao ritmo das metrópoles brasileiras.
Disponível na Netflix.
Elon não Acredita na Morte
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Filme de estreia do diretor Ricardo Alves Júnior, este suspense mineiro pega uma certa tendência do autorismo brasileiro para o cinema de fluxo e contemplação, e coloca isso a serviço de um filme-delírio, sobre um homem que vaga pela cidade à procura da esposa que desapareceu misteriosamente. Seria o caso típico do “filme onde nada acontece” se as coisas não estivessem impregnadas de assombro, sejam ruas vazias, casas malcuidadas ou locais de trabalho insalubres, feitos sempre de memórias nebulosas e afetos mal resolvidos, tanto na relação de Elon com a mulher (morta?) quanto na sua própria relação com a cidade e o mundo.
Disponível na Netflix.
Mangue Negro
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O primeiro longa-metragem do capixaba Rodrigo Aragão foi rodado no manguezal próximo à sua casa em Guarapari, de onde saem zumbis inexplicavelmente, a título de parábola ambiental. Realizado em 2008 com cerca de R$ 50 mil, é uma grande homenagem ao gênero, e depois de Mangue Negro Aragão, que antes trabalhara em circo e se especializara em efeitos especiais, se tornou um dos principais nomes do horror nacional raiz e digno herdeiro de José Mojica Marins, com quem trabalharia em 2015 em As Fábulas Negras, último trabalho de Mojica. É de Aragão a edição de efeitos práticos em O Clube dos Canibais, inclusive.
Disponível no Looke e NetMovies.
Branco Sai, Preto Fica
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O longa do diretor Adirley Queirós parte de um episódio real ocorrido em um baile de black music em Brasília em 1986 para falar de um típico caso de abuso policial, que entre feridos deixou um homem com uma perna amputada e outro paraplégico. A trama sobre um viajante do tempo que vem ao presente investigar o ocorrido mistura ficção científica distópica, e especificamente uma pegada cyberpunk, com a tendência natural de Brasília para o western, para tentar dar conta do horror e do absurdo de ter a vida definida pelo determinismo do racismo estrutural.
Disponível na Netflix.
O Despertar da Besta
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É impossível falar de horror no Brasil sem passar por Zé do Caixão, e a oferta de filmes de José Mojica Marins no catálogo do Belas Artes sempre merece lembrança. Censurado pela Ditadura em 1969, que não só exigiu cortes como depois procurou destruir os negativos do longa, O Despertar da Besta passa por mazelas sociais (dependência química, as omissões do Estado) para provocar a intelectualidade e o bom gosto com suas imagens delirantes de sadismo. É um pequeno compêndio não só da visão de mundo e de cinema de Mojica, como também da imagem que ele fez de si mesmo nas telas.
Disponível no Belas Artes à La Carte.