Cena de A Contadora de Filmes (Reprodução)

Filmes

Crítica

A Contadora de Filmes é saga sensível sobre o que - e quem - fica para trás

Coescrito por Walter Salles, longa chileno só pisa em falso como adaptação literária

12.12.2024, às 11H42.
Atualizada em 12.12.2024, ÀS 15H11

Há algo de épico na narrativa traçada por A Contadora de Filmes, que atravessa décadas na vida de sua protagonista, María Margarita. Nascida nos anos 1960, no interior do Chile, filha mais jovem de um mineiro de sal e uma misteriosa artista, Margarita vive um período turbulento na história de seu país como a maioria de nós o faz: envolvida em suas próprias tragédias e triunfos, que só se relacionam passageiramente com as idas e vindas políticas do mundo ao redor. Como o livro em que se inspira, assinado por Hernán Rivera Letelier, A Contadora de Filmes traça essa trajetória revelando, através de uma linearidade que tem algo de prazeroso, os dramas irônicos do destino - onde Margarita vai parar, e como, e com quem, e sem quem. É um simulacro romanceado da vida comum que lembra muito a tetralogia napolitana, de Elena Ferrante, transportada para a TV na excelente série A Amiga Genial.

Quer dizer, há uma grande diferença entre as duas adaptações, é claro: A Contadora de Filmes é um longa-metragem só, de pouco menos de duas horas, enquanto A Amiga Genial teve quase 40 horas de televisão para fazer jus à monumentalidade da história de Ferrante. E pode parecer trivial esse contraste de formatos, mas o filme de Lone Scherfig (Educação) sofre por ele. Conforme os anos e as décadas vão se passando na história traçada pelo roteiro, coassinado pelo brasileiro Walter Salles ao lado de Rafa Russo (Memórias de Uma Paixão) e Isabel Coixet (cineasta espanhola celebrada por filmes como Minha Vida Sem Mim e A Vida Secreta das Palavras), a sensação é que A Contadora de Filmes vai deixando escapar seus próprios personagens, e qualquer permanência que eles poderiam ter para envolver o espectador em seu mundo - como se o longa, meio como a própria Margarita, também os fosse perdendo para o turbilhão da história.

Não é uma questão da crueldade dos destinos que A Contadora de Filmes traça para os irmãos, pais e vizinhos da protagonista, mas uma questão de nunca termos vivido o bastante com eles para sentirmos o peso desses destinos. Estruturado tematicamente como uma narrativa sobre as pessoas e os lugares que ficam para trás diante da marcha imparável da História (com H maiúsculo, mesmo), A Contadora de Filmes não pode se escorar só na elegância de sua encenação ou no talento de seu elenco para o melodrama na missão de nos fazer torcer por essas pessoas e esses lugares, lamentar o que se perde quando eles se perdem para o tumulto político, a transformação econômica, as injustiças sociais. Falta a essa adaptação de Letelier, enfim, o espaço para ser uma crônica histórica tão sensorial e impactante quanto a de Ferrante.

Dito isso, é claro que A Contadora de Filmes também tem belos momentos salpicados nessa receita que, por todos os seus desajustes, é muito bem intencionada. A diretora Scherfig, com a ajuda do cinematógrafo Daniel Aranyó (Bird Box: Barcelona), faz do deserto do Atacama uma locação ao mesmo tempo mítica e charmosamente excêntrica para a trama - encantada pelas planícies amarelas, pelos tornados de poeira e pelas casinhas sem muro enfileiradas em ruas largas de terra, ela evoca os antigos faroestes hollywoodianos com uma gentileza que lhes faltava, e mostra-se também uma encenadora sensível dos momentos mais dramáticos do longa, posicionando os atores com cuidado e escolhendo sabiamente os momentos de corte de cada cena (há uma transição temporal bem no miolo do filme que é genuinamente prazerosa por sua engenhosidade).

Já no elenco, Berénice Bejo e Daniel Brühl emprestam verniz hollywoodiano aos procedimentos, mas são os talentos chilenos que têm mais espaço para brilhar: Sara Becker e Alondra Valenzuela, escolhidas para dividir o papel principal de María Margarita, desenham entre si uma continuidade convincente, principalmente ao cerrar nos olhos a impressionabilidade da juventude resguardada, misturada à sabedoria particular de quem entende a vida vicariamente através da arte. Elas são, enfim, perfeitamente críveis como a jovem do interior que acha um caminho escuso e acidentado diante das dificuldades de crescer e se entender (como mulher, como chilena, como artista) no meio de “momentos históricos” que pouco têm a ver com ela.

É uma história poderosa, essa que A Contadora de Filmes tem para relatar. Uma pena que, muito pelas limitações de seu formato, ele pareça um longa tão assustado por sua própria enormidade.

Nota do Crítico
Bom