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Crítica

Na contramão, Adão Negro oferece filme de super-heróis descomplicado

The Rock se apropria da sisudez da DC e usa pastiche de clichês do gênero para desarmá-la

18.10.2022, às 18H30.

Dwayne Johnson passou anos tentando tirar um filme de Adão Negro do papel, e nesse período o Universo DC do cinema viu despontar e depois ruir todo o projeto de interligar suas histórias a partir da mitologia criada por Zack Snyder para a Liga da Justiça. Adão Negro estreia em 2022 com a incumbência de reanimar a base de fãs desse projeto, o que tende a gerar uma expectativa desproporcional para o que o filme tem a oferecer.

Porque afinal o longa dirigido por Jaume Collet-Serra não deixa de ser um típico veículo de The Rock, como as aventuras na selva em que o ator repete a camisa bege e só troca a ameaça e o seu elenco coadjuvante. Poucos atores hoje em Hollywood conseguem essa façanha de criar subgêneros autossuficientes em torno de si, modelados para evocar de imediato no espectador uma noção de conforto e familiaridade. Ao se colocar em ambientes de fórmulas narrativas onde tudo é derivativo, é como se The Rock dissesse e provasse que a única coisa particular nesses filmes é a própria figura imutável do ator.

E isso tende a gerar um atrito aqui, uma vez que o próprio gênero dos filmes de super-herói é entendido hoje como um fim em si mesmo, com suas cenas pós-créditos que levam à promessa circular de histórias maiores e melhores, de mitologias cada vez mais intrincadas. A vocação de The Rock para filmes-de-atrações enxutos, descontextualizados e atemporais - vocação essa que ele põe em prática sistematicamente na posição de produtor dos seus próprios longas - cria em Adão Negro dois filmes dentro de um.

O primeiro, o filme que pretende se inserir na mitologia do UDC, é francamente o mais precário. Campeão de Kahndaq que combateu a escravidão para libertar seu povo na Antiguidade, Teth-Adam é desperto no século XXI por caçadores de relíquias no Oriente Médio. Com os poderes de SHAZAM herdados dos magos que o salvaram, Teth-Adam logo é registrado como ameaça por Amanda Waller, que coloca a Sociedade da Justiça para anular o alvo. O desconforto de ver Waller gerenciar nos filmes da DC tanto um grupo de párias como o Esquadrão Suicida quanto os integrantes virtuosos da Sociedade fica evidente na atuação desinteressada de Viola Davis (que parece ter participado da filmagem via videochamada) e de resto esse desconforto é tratado em Adão Negro como um não-fato.

A própria composição da Sociedade da Justiça parece ter a derivação como regra, a partir dos modelos mais bem sucedidos dos Vingadores junto ao público família. O Senhor Destino faz as vezes do Doutor Estranho, o mago que antevê e analisa futuros possíveis; o Gavião Negro se apresenta como uma figura de afrofuturismo, mistura de Batman e Pantera Negra, pilotando a sua versão do Pássaro Negro dos X-Men; enquanto a Ciclone evoca Tempestade de imediato, é o alívio cômico do Esmaga-Átomo quem emula mais descaradamente sua contraparte do MCU, o também cômico Homem-Formiga. Ao Adão Negro, resta ser visualmente um compilado de reminiscências do Snyderverso, com seus poderes em câmera lenta e suas poses que lembram o Flash e o Superman.

Entender essas escolhas como descaso ou ofensa seria compreensível do ponto de vista do fã que deseja uma mitologia consistente filme a filme e também emancipada da influência da Marvel. Mas talvez seja mais satisfatório (ou pelo menos menos frustrante) atentar para o outro filme que Adão Negro carrega dentro de si: aquele que funciona menos como ramificação do UDC e mais como veículo de The Rock, e que como tal entra no gênero dos super-heróis pela primeira vez, filtrando lições e clichês de filmes concorrentes, fazendo uma tabula rasa das expectativas e tateando as potencialidades que esse gênero desgastado ainda tem dentro de si - mesmo que só tenham sobrado as potencialidades do pastiche. Um filme que só vai aproveitar o receituário de Marvel e DC naquilo que importa para uma usina pop como The Rock, o conforto, o imediatismo e a familiaridade.

Esse filme demora um pouco para se revelar ao espectador mas tende a ser bem mais recompensador, graças ao talento de Collet-Serra para pensar a narrativa em torno de set pieces chave, e para incorporar toda a concepção da computação gráfica ao seu processo de direção. Quando The Rock e o diretor espanhol firmaram uma parceria a partir de Jungle Cruise (2021), parecia o casamento perfeito, porque Collet-Serra tem o perfil ideal para esses filmes de ação “puros”, bem blocados, que valorizam a tendência de The Rock para o entretenimento derivativo descomplicado. Jungle Cruise vinha, porém, com a carga de fazer de The Rock uma versão diluída de Jack Sparrow, enquanto a tabula rasa proposta por Adão Negro se estende ao próprio personagem do anti-herói, cujo traço mais identificável da sua história pregressa nos quadrinhos é o fan service da pose no trono, entregue já nos finalmentes do filme.   

Ou seja, Adão Negro pode ser entendido de certa forma como uma regressão e uma depuração do próprio gênero. Antes de ser aquele filme marrento que The Rock tem levado às suas entrevistas de divulgação, que “vai mudar a hierarquia de poder da DC”, Adão Negro é um filme que regressa a um estado quase embrionário e imaculado dos atuais filmes de super-heróis, antes de todas as amarrações de mitologia e das crises infinitas de personalidade e culpa. Seu parentesco mais imediato é com o primeiro Os Vingadores (2012), no sentido em que a preocupação primeira de Adão Negro é colocar seus action figures para brigar, e confiar que todo o resto da narrativa vai se construir em torno disso, com a licença de um ou outro comentário autoirônico sobre o gênero em si.

Acreditar em Adão Negro é acreditar que um filme desses pode ir da pose de canastrice à catarse da pancadaria num segundo, e ir e voltar nesse eixo repetidamente. O único lastro dramático necessário é eleger um adolescente como o representante do espectador dentro do filme, porque é o olhar vacinado desse personagem - que textualmente nos diz como Adão Negro deve se portar enquanto produto e marca - que vai desarmar as nossas expectativas por um filme de super-heróis “elevado”. Adão Negro sabe que não pode deixar muito respiro na ação, sob o risco de se desfazer se repararmos demais na sua indigência, então na cena em que os heróis planejam uma forma de entrar no cenário do clímax é óbvio que Teth-Adam vai forçar uma elipse na exposição, na base da porrada.

A discussão moral sobre o que significa ser um super-herói, que antepõe Teth-Adam à Sociedade da Justiça na trama, não se presta a muita coisa além de justificar a pancadaria. Collet-Serra sabe que sublinhar esse dilema se tornou uma coisa compulsória nessa fase tardia, depois de 20 anos de incansável hegemonia de filmes do gênero em Hollywood, e dá à questão a falsa importância que ela exige. Não é nos diálogos metalinguísticos do adolescente que Adão Negro demonstra estar mais consciente de si mesmo: é na própria sem vergonhice com que o filme adere às regras cansadas do gênero e abraça o pastiche e a derivação.

Desperto então para o que cabe ou não fazer dentro do que lhe é dado, Adão Negro pode se libertar enfim para executar um competente espetáculo sensorial, que não exige conhecimento prévio ou mesmo muito investimento de atenção. O que resta mostrar e contar num filme de super-heróis em 2022, afinal? Collet-Serra passa pela depuração que o projeto exigia e então faz o seu melhor: elaborar situações que casam computação gráfica e live-action de forma harmônica, imaginando cenários espacialmente zelosos que sejam capazes de transportar, na ação, o espectador para dentro de uma fantasia crível. Cento e oitenta milhões de dólares na mão do espanhol se transformam numa sugestão de 250 milhões, por essa sua capacidade de nos situar na ação de forma convincente.

Ainda que Adão Negro continue sendo encenado na imitação de uma metrópole árabe com duas ruas e uma praça, com personagens cujo semblante às vezes pareçam deepfakes de si mesmos (US$ 180 milhões não pagam muito nos blockbusters hoje em dia), o diretor faz o orçamento render. Há muita fumaça e espelhos para encobrir as óbvias carências, que Collet-Serra compensa com um CGI impressionista; a textura borrachenta dos rostos dos atores se desmancha nesse impressionismo, quando as lutas se transmutam numa pirotecnia abstrata de lampejos e rastros de cor e luz. Nas câmeras lentas, essa estetização talvez lembre o estilo de Zack Snyder, mas a diferença aqui é que Collet-Serra não pretende com isso formular todo um juízo grave sobre o mundo; seu filme só está preocupado na primazia do efeito. 

Os resultados disso são pontuais mas muito consistentes: o primeiro embate de Teth-Adam e a JSA na cratera da praça; a cena de luta que parece uma pintura de Teth-Adam e Gavião Negro no quarto; todo o sobe e desce de câmera na escadaria do prédio do adolescente. Reconhecer esses valores talvez seja difícil porque nos habituamos a reparar mais nas coisas de roteiro do que nas de concepção espacial (ainda mais num filme como Adão Negro, cujo intuito é tornar tudo isso simplesmente fluído e “invisível”), mas basta ver a série de oportunidades cênicas que uma locação prosaica como os andares e os corredores do edifício adquire na mão de um diretor como Collet-Serra: entradas e saídas para perseguições, lutas e suspenses de ângulos variados, que nos envolvem nesse universo de fantasia (convém não esquecer que o Oriente Médio do filme é o mesmo das fábulas orais das Arábias) com uma ou outra solução bem pensada de câmera.

Esse tipo de plasticidade cuja finalidade é antes de tudo narrativa parece ter se perdido numa Hollywood que só se preocupa com a estetização quando ela vem embutida em um novo projeto de vaidade dos cineastas da moda. O pastiche de Adão Negro não seria considerado sofisticado segundo nenhuma das métricas correntes na indústria hoje, mas não dá pra negar que é um grande bálsamo para os olhos deparar com um filme de super-heróis cuja porção de CGI parece ter sido realizada pela mesma equipe que fez o live-action. Essa fluência é tão rara hoje em dia que se torna um mérito acima dos demais (e acima dos defeitos). Há aqui uma harmonia e uma continuidade do live-action para o CGI que não há, por exemplo, em Pantera Negra - um filme que de resto é julgado mais respeitável que Adão Negro sob qualquer outro ângulo que se olhe.

De vaidoso, Adão Negro tem apenas a figura de Dwayne Johnson, que realiza um filme-de-produtor à moda antiga, para si mesmo, executado por um diretor de aluguel dos mais competentes. Ofuscado pelo brilho dos duelos e dos efeitos visuais, The Rock até demora para encaixar um registro na sua atuação que transforme a sisudez e as poucas palavras de Teth-Adam em um canal para o seu conhecido carisma, o que acontece finalmente quando a trama começa a engatar um clímax no outro. Seria de se esperar mesmo que um ator criado nas lutas do WWE se saísse tranquilamente num filme de lutinha. Nada disso se comunica com a expectativa que as pessoas fazem dos universos integrados de super-heróis, e justamente por isso Adão Negro talvez tenha chegado como um refresco para os sentidos.

Nota do Crítico
Ótimo