Não anda fácil a vida para os adúlteros no cinema. Mas pelo menos em Garota Exemplar Ben Affleck era feito de bode expiatório para ilustrar a inviabilidade do casamento.Em Antes de Dormir (Before I Go to Sleep, 2014), Nicole Kidman é castigada em nome da santidade do matrimônio.
O suspense acompanha Christine (Kidman), mulher que sofreu um ataque no passado e não consegue manter memórias por mais que um dia. Diariamente, ela acorda sem saber onde está - e, principalmente, sem saber quem é o homem (Colin Firth) que dorme ao seu lado.
Rowan Joffe, roteirista de Extermínio, dirige o filme - com base no romance homônimo publicado no Brasil em 2012 pela Record - como um whodunit misturado com triângulo amoroso para tentar dar um novo fôlego ao subgênero do "perigo entre quatro paredes", que há anos assombra donas de casa em filmes sobre violência doméstica que sempre se reprisam no Supercine. Como um Adrian Lyne tímido, porém, Joffe faz de Antes de Dormir um julgamento moral das consequências da traição.
Sua encenação é envolvente, particularmente na obsessão por detalhes relacionados a insegurança - a trava da porta do carro, o farol e o alarme, a porta da garagem - para transmitir fragilidade. Planos gerais do lado de fora da casa, mesmo quando o som continua lá dentro, reforçam a claustrofobia. Ajuda muito que Christine, além de desmemoriada, é bastante destrambelhada: ela quase é atropelada um par de vezes no filme, para completar a sensação de ameaça constante.
Com a personagem (e o espectador mais sugestionável) como reféns, Joffe faz em Antes de Dormir uma investigação conjugal em tom impressionista, transformando fases e crises de casamentos (a infidelidade, a maternidade, o "luto" do filho que cresce e deixa a mãe, a inevitável velhice) em pistas de um jogo sádico de expiação de culpa. Na sua defesa do "bom casamento", Antes de Dormir usa as imperfeições desse mesmo casamento (sufoco, alienação) apenas como ferramentas de suspense.
Que o perdão que Christine inconscientemente procura venha na forma de um objeto trivial da vida de uma dona de casa - o ferro de passar, esse totem da boa esposa do século 20 - é a punchline de Antes de Dormir, um momento de comédia involuntária num filme que definitivamente não tem o mesmo senso de humor de Garota Exemplar.
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