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Crítica

Aquele Querido Mês de Agosto | Crítica

Longa português mistura documentário e drama para contar sua história

28.09.2008, às 21H00.
Atualizada em 17.11.2016, ÀS 03H10

Se a historinha de bastidor que o diretor Miguel Gomes conta é real mesmo, não importa muito - aos poucos descobrimos que "história real" é um conceito um tanto volúvel em Aquele Querido Mês de Agosto (2008), filme português que coloca, com muito bom humor, ficção, documentário e a arte da representação como um todo em curto-circuito.

Aquele Querido mês de Agosto

Aquele Querido mês de Agosto

Aquele Querido mês de Agosto

A historinha é a seguinte: a equipe de filmagem de Gomes (vivido no filme por ele mesmo) se instala no interior do país para filmar a história de Tânia, adolescente que, depois do sumiço da mãe, vive uma relação intensa com o pai, relação essa que termina afetada quando Tânia se interessa por seu primo. Enquanto Gomes aguarda o dinheiro dos produtores (já está tudo montado na locação, mas não há sequer elenco escalado), ele decide botar a câmera para funcionar e registrar o que aparecer pela frente.

A metalinguagem está presente desde os créditos iniciais, que não saem como o diretor queria. A partir daí acompanhamos a equipe por gravações documentais e entrevistas com moradores da região em Aldeia de Benfeita, Pardieiros, no Rio Alva, em Coja, Anseriz, Pisão, Luadas, Vinhó... Agosto é a época dos festejos locais, com muito karaokê, comida, fogos-de-artifício. Vez ou outra aparece em cena aquele microfone de som direto, o boom, que os portugueses chamam de coelho, por ser fofinho.

A equipe assume que está ligando a câmera e pegando o que vê, mas a disposição desse material desde o início é sofisticada (ainda que os planos sejam quase todos estáticos e os cortes, raros), particularmente com o som de uma cena invadindo a outra - essa questão do som ainda vai render uma piada impagável no fim do filme. O caso é que a grande jogada de Aquele Querido Mês de Agosto é mostrar que há muito de ficcional na forma como essa "vida real" se apresenta e na forma como ela é ordenada no filme.

Em uma cena, por exemplo, o diretor Gomes filma jovens fazendo de conta, com sombras, diante dos faróis de um carro, que estão caçando um javali. Esse javali morto de mentirinha aparece minutos depois, morto de verdade, pronto a ser limpo para o jantar. Há uma ficção sendo feita ali com material documentado, portanto. Antes disso, o próprio material que Gomes colhe já vem impregnado de ficção. Como na história de Paulo, um sujeito ruim da cabeça que dá um salto mortal da ponte do Alva todo Carnaval. Para cada pessoa que conta a história de Paulo, ouvimos uma versão diferente. "Eu não vi, foi o que me disseram", diz um entrevistado.

Outro momento emblemático: quando o gringo da machadinha, no dia do seu aniversário, dá uma entrevista à equipe acompanhado de uma intérprete lisboeta, mas, ao invés de traduzir, ela refaz o depoimento do gringo com suas próprias opiniões. E aí ouvem-se os ecos do velho mantra semiótico de McLuhan, o meio é a mensagem. Seria muito difícil fazer um filme como Aquele Querido Mês de Agosto em outro lugar, porque é a tradição de história oral do interior de Portugal que o fundamenta.

Já seria um grande filme sobre a representação da realidade (e sobre o mito do gênero documentário de que é possível ver o mundo imparcialmente, sem os filtros do observador), um Gente da Sicília lusitano, não fosse a virada. De repente, sem qualquer mudança no estilo, começamos a assistir à encenação prevista lá no começo, a história de Tânia. O cineasta acabou pegando moradores do lugar para viver os personagens, pois, como havia dito antes para um produtor, ele "quer pessoas, não atores".

E se a primeira metade do filme era um documentário com toques de ficção, a segunda se mostra uma ficção com toques de documentário - antes de mais nada, porque já conhecemos a história anterior daquele cenário, como quando Tânia e seu primo passeiam sobre a ponte (a mesma ponte de onde Paulo pula todo Carnaval). E há temas tocados pela ficção que fazem parte daquela comunidade de fato, como o patriarcado arraigado. O resultado da inversão de representações é genial. Fica difícil saber até que ponto são mera encenação cenas como a do incêncio ou das procissões.

E o mais interessante é que Gomes não se desvia desse choque em momento algum. Nos últimos instantes de Aquele Querido Mês de Agosto, quando filma uma árvore num parque, ele faz questão de enfocar a plaquinha que explica-lhe a espécie. Por que, veja bem, estamos no cinema, terra da ilusão, então é prudente mostrar a plaquinha para que o espectador não fique pensando que aquela árvore é de mentira.

Nota do Crítico
Excelente!