Se As Memórias de Marnie (Omoide no Marnie) for mesmo o derradeiro longa em animação tradicional do Estúdio Ghibli, não terá o peso testamental de Vidas ao Vento, nem um caráter de elegia a essa técnica, como O Conto da Princesa Kaguya. Ainda assim, o longa escrito e dirigido por Hiromasa Yonebayashi é inequivocamente um produto da casa.
O longa adapta o livro de 1967 da britânica Joan G. Robinson sobre a amizade de Anna, uma garota solitária, enviada por seus tutores para morar um tempo com seus tios à beira do mar para tratar da saúde, e Marnie, uma misteriosa jovem que Anna acredita ser fruto de sua mente. Embora o romance infantojuvenil lide com elementos recorrentes da Inglaterra do Pós-Guerra (a orfandade recente, a aristocracia como um fantasma do passado), As Memórias de Marnie tem as duas características principais dos filmes do Ghibli: o contato com a natureza e a história feminina de formação.
Se Anna não chega a alçar voo sobre mares e plantações ao lado de entidades mágicas - embora esboce uma discreta flutuação no ar numa cena - As Memórias de Marnie substitui os delírios de fundo budista por um drama mais contido, de introspecção e contato com o mundo. De criança que teme o toque das pessoas, Anna se torna uma adolescente de fato, aberta a experiências (e a mudança na fisionomia da personagem é feita sutilmente no traço), quando a natureza se revela para ela à beira-mar.
O sobrenatural surge no filme de Yonebayashi mais como um pretexto do que como um elemento transformador de fato, na história de Anna. Embora a trama de As Memórias de Marnie se desenrole entre lembranças e sonhos, é a descoberta do tato que fundamentalmente liberta a personagem: o contato com a água do mar, as trilhas e os atalhos no mato, o quimono sujo de terra. Tudo de que Anna precisa para crescer está na natureza, tanto os prazeres e a segurança (nas cenas com os tios, cortando tomates, mexendo na comida) quanto os terrores do desconhecido (a maré que sobe de repente, a tempestade de vento).
Ao mesmo tempo em que romantiza o cenário de um jeito quase metalinguístico - nas cenas com a pintora à beira-mar, que faz quadros da paisagem muito semelhantes à paleta de cores usada ao longo do filme para pintar o verde do dia e o azul do luar - Yonebayashi não torna essa experiência alienante. Pode parecer uma imagem chocante para nós os momentos em que Anna desperta de sonhos, jogada inconsciente na lama, de bruços, à beira da estrada, mas se existe algo em As Memórias de Marnie que esteja próximo de emular a violência do mundo, as dores do crescimento, são esses instantes de comunhão mais direta com a terra.
Britânico na origem, As Memórias de Marnie termina absolutamente japonês no seu respeito aos elementos, e ao pequeno gesto.