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Crítica

Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa

Divertido e sem pudor, filme celebra todas as formas do feminino em uma jornada de autorrealização

06.02.2020, às 09H31.
Atualizada em 07.02.2020, ÀS 12H13

“Mulher forte” é um termo muito usado para descrever personagens que desafiam os padrões (ou o patriarcado, se você preferir). Ironicamente, costumam ser visões idealizadas, masculinizadas ou hipersexualizadas, como se a força estivesse em uma índole pura, bíceps definidos ou um decote profundo combinado com uma metralhadora. 

Sarah Connor, de Exterminador do Futuro, e Ripley, de Alien, são bons exemplos de como por muito tempo Hollywood achou que para ser mulher e forte era preciso abrir mão do feminino. Embora as duas personagens sejam extremamente importantes como uma resposta à regras de um mundo rosa, a famosa “cor de menina”, também se tornaram limitadoras. A prova é que quando Mulher-Maravilha se tornou um marco, cultural e financeiro, a diretora Patty Jenkins precisou defender a amazona da declaração de James Cameron de que a sua Sarah Connor era um exemplo melhor de heroína por não ser um ícone de beleza. “Se as mulheres sempre precisam ser difíceis, duronas e perturbadas para serem fortes, e não estamos livres para sermos multidimensionais ou celebrar um ícone para mulheres do mundo todo por ela ser atraente e amável, não chegamos muito longe, não é mesmo?”, questionou a cineasta

Se a resposta já estava dada por Mulher-Maravilha, e corroborada por Capitã Marvel (para nos atermos a exemplos oriundos dos quadrinhos), Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa chega para amarrar o conceito de “mulher forte” com um laço bem bonito (com detalhes em veludo rosa) e chutar para longe. O filme produzido e estrelado por Margot Robbie elabora a versão fetichista e glamourizada apresentada em Esquadrão Suicida sem negar sua origem complicada. Sim, ela vivia em um relacionamento abusivo, sim ela gostava da proteção e poder consequentes da sua submissão. 

Harley Quinn não é, pois, uma personagem que permite uma abordagem leviana. Paul Dini e Bruce Timm, os criadores da vilã/anti-heroína, descobriram isso na prática em Batman: A Série Animada. Ver Arlequina sendo maltratada enquanto jura amor eterno ao seu agressor logo se torna insustentável. Na animação, a solução veio da sua relação com Hera Venenosa, a guia da sua libertação. No cinema, passa ser uma questão de sobrevivência. Ou ela se emancipa ou morre. 

A relação com as Aves de Rapina é uma consequência dessa busca, não a salvação em si, o que é uma das questões mais interessantes do longa escrito por Christina Hodson. Ainda que exista a intenção clara de fazer um filme de equipe feminina, cada personagem tem um caminho próprio, com o mínimo de espaço para estabelecer empatia: Caçadora (Mary Elizabeth Winstead) tem habilidades de assassina, mas zero traquejo social, Renee Montoya (Rosie Perez) é um clichê policial com alma de heroína e Canário Negro (Jurnee Smollett-Bell) prefere se calar por medo da responsabilidade da sua própria voz. O carisma das atrizes faz das imperfeições das heroínas uma rota para torná-las consistentes. 

Quem perde um pouco nessa dinâmica é Cassandra Cain (Ella Jay Basco), transformada em um dispositivo de enredo para convenientemente movimentar a trama. A figura fofa da jovem atriz compensa em parte essa estratégia, principalmente nas suas interações com Arlequina. Dona do ponto de vista, Harley Quinn facilmente absolve o roteiro da sua ingenuidade e inconsistência. Assuntos pesados - incluindo abuso e sadismo - se tornam estranhamente palatáveis enquanto ela comanda as idas e vindas da narrativa. A violência é parte de uma realidade vista com as cores de um musical. 

A comparação com Deadpool é inevitável, mas Aves de Rapina se esquiva de ser uma cópia. Nomes experientes como K.K. Barrett (designer de produção indicado ao Oscar por Her), Erin Benach (figurinista de Drive e Demônio de Neon) e Matthew Libatique (diretor de fotografia indicado ao Oscar por Nasce Uma Estrela e Cisne Negro), equilibram luxo e decadência para captar uma Gotham Zona Leste orgulhosa de renegar o gótico suave padrão. Um lado visual muito bem resolvido que torna aparente a inconstância no ritmo de algumas cenas e diálogos: há um acorde dissonante que depende da montagem de Jay Cassidy, três vezes indicado ao Oscar, e Evan Schiff, de John Wick 2 e 3, para retomar o compasso. 

Essa colaboração com a equipe de John Wick, aliás, (o diretor da franquia Chad Stahelski e sua empresa 87eleven foram responsáveis pelas coreografias de luta) faz da ação de Aves de Rapina um ponto de interesse, não parte do protocolo. São cenas que usam a feminilidade como força, como fonte da sua brutalidade. O corpo esguio usa o peso do capanga contra ele mesmo, a puxada de cabelo parte da nuca para machucar mais.

A regra da diretora Cathy Yan é não esconder que esse é um filme feito por mulheres: o golpe baixo é um soco na “teta”, o elástico para prender o cabelo é um aliado essencial na batalha final. O que não deve ser entendido como um limitador — “proibido homens aqui” — mas como a chegada de uma nova perspectiva, inclusive para o público feminino. Diferente de Mulher-Maravilha ou Capitã Marvel, tão grandiosas que se tornam ideais, as personagens de Aves de Rapina não são a exceção à regra. Mesmo sob a ótica exagerada de Gotham, suas habilidades modestas e problemas comuns dão ao filme um propósito realista. A relação entre Arlequina e seu pão com ovo vale aqui muito mais do que o destino da humanidade. 

Máscara Negra, que pode ser facilmente assimilado com um vilão de desenho animado, saboreado sem pudor por Ewan McGregor, assume sua caricatura como um recurso narrativo desse realismo “fantabuloso”. Meritocrata de família rica, ele é a síntese do homem em busca de poder que se submete a qualquer outro homem com mais poder. Ao que casa sua relação com Victor Zsasz (Chris Messina), amante e lacaio, o masoquista que festeja o seu sadismo. 

Derrotar o vilão em Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa não salva o mundo dos seus horrores, é apenas uma etapa da difícil jornada pela autorrealização das suas personagens. Sem-vergonha como sua protagonista, o filme abusa dos seus contrastes — bruto/delicado, solar/sombrio, punk/pop, adorável/violento, estranho/convencional, heroísmo/vilania — para explicar que força, independente do gênero, não é uma entidade que determina como alguém deve se comportar, é só coragem para aceitar a si mesmo.

Nota do Crítico
Ótimo