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Bata Antes de Entrar | Crítica

Diretor de O Albergue agora transforma o torture porn num teatro do absurdo

30.09.2015, às 15H34.

Como naquele quadro do CQC em que comentaristas de Internet são chamados a defender seus pontos de vista diante da câmera no "mundo real", o terror psicológico em Bata Antes de Entrar (Knock Knock, 2015) surge da perplexidade de ver nossas noções de convívio se desmancharem diante dos nossos olhos quando o virtual invade a realidade.

Essa seria uma forma de enxergar o filme dirigido por Eli Roth, simpática ao drama absurdo do seu protagonista, vítima de uma fantasia pornô que se materializa em tribunal, mas logo descobrimos que não é a única.

O longa abre com travelings que descem do céu e vão reduzindo seu raio de alcance até chegar à isolada casa de Evan (Keanu Reeves) nos arredores de Los Angeles, como um comercial de operadora que mostra o sinal da Internet viajando e trazendo o mundo para a sua porta. Esse contato com o exterior, com o mundo físico (e que físico!, na forma de duas jovens belas e desequilibradas que invadem sua vida no Dia dos Pais), tem tudo para abalar Evan, um arquiteto que vive de simulacros: fotografias várias da mulher e dos filhos projetam uma família feliz, esculturas e instalações projetam uma esposa bem sucedida como artista plástica, a picape de DJ e os vinis projetam no pai de família acomodado a imagem de um jovem livre de cabelos longos e rebeldes.

O cuidado da cenografia em Bata Antes de Entrar é menos de criar um mundo crível para esse personagem e mais de construir ao seu redor uma fantasia bastante ostensiva de realizações e de felicidade. Para Roth parece importante demarcar essa alienação para fazer de Evan uma versão quase cartunesca de nós, o público majoritário, branco, heterossexual, de classe média-alta, cuja "realidade" hoje também tem muito de construção ficcional. A opção pela sátira, de qualquer forma, se confirma ao longo deste filme de invasão doméstica que conserva alguns resquícios dos torture porn que tornaram Eli Roth famoso (e que já miravam boa parte do seu sadismo para questões de classe e justiça social).

Enquanto narrativa, Bata Antes de Entrar começa a ficar mais interessante quando as ilusões se desfazem num nível estrutural: nossa expectativa de assistir a um terror de invasão tradicional, em que o dono da casa chega ao limite e protege seu território abdicando da civilidade (com frequência no cinema americano o despertar para a realidade é um despertar para a violência), é negada com uma série de pistas faltas dadas por Roth. Uma delas é o insistente plano que mostra a impressora 3D no escritório de Evan, com seu aviso de perigo, sugerindo que o objeto é o favorito a virar arma de defesa no clímax do filme.

Mas Roth não só reluta em tornar Evan um "herói", como o diretor se dedica a fazer de Bata Antes de Entrar um registro da perplexidade desse homem de bem diante da barbárie. Não por acaso, o momento de explosão decisiva de Evan se manifesta num monólogo. A comparação que vem à mente é com Fim dos Tempos de M. Night Shyamalan, que também se preocupa mais em registrar nos close-ups do seu protagonista as reações de fisionomia. Keanu Reeves e Mark Wahlberg têm em comum - além de um esforço de expressividade que sempre pareceu muito penoso para os dois atores - nesses dois filmes o completo desconcerto diante do absurdo que presenciam.

"Não era um sonho", diz ao fim a pixação de batom no espelho, como se sacramentasse o fim da divisão entre o virtual e o real. Embora sempre deixe a impressão de ser não um cineasta rigoroso mas um cultor de imagens fáceis de impacto, Eli Roth consegue em Bata Antes de Entrar criar de fato uma atmosfera muito bem controlada de desconforto, jogando com aquilo que projetamos (tantos nossos medos quanto nossas fantasias) para questionar nossas certezas, nossa hipocrisia e nossas noções de justiçamento.

Nota do Crítico
Bom