Chappie, o terceiro longa-metragem do diretor sul-africano Neill Blomkamp, começa como Distrito 9, com especialistas dando entrevistas à TV para dar logo ao espectador toda a letra da premissa: estamos em 2016, robôs pré-programados estão substituindo com sucesso os humanos no policiamento de Joanesburgo. A próxima fronteira da ciência, descobrimos depois, é alcançar a temida inteligência artificial.
Da ambientação nas margens pobres da cidade sulafricana à trama de transmutação, Blomkamp revisita aqui muitos dos elementos do seu primeiro longa, mas com uma diferença decisiva: enquanto Distrito 9 se apresentava primeiro como um conto de horror, a transmutação como uma maldição, no conto de fadas Chappie a transformação, embora possa se revelar horrorosa, começa como uma dádiva. No filme - menos David Cronenberg e mais Hans Christian Andersen - depois de ganhar consciência o robô Chappie luta por conquistar uma identidade.
Mas que identidade é essa? Estamos na África, continente que visita o notíciário pelas toneladas de lixo que o mundo desenvolvido despeja hoje em suas terras. Se ali a vida tem um valor efêmero, isso se reflete na arquitetura: fábricas desativadas, prédios ocos e favelas improvisadas formam o cenário da Joanesburgo de Blomkamp (que aqui expande o olhar sobre a cidade de uma forma interessante em relação a Distrito 9, embora o horizonte de desolação pareça sempre a mesmo). Aqui a regra não é a invenção, ou sequer a reciclagem, mas o descarte.
Então, de novo, que identidade um robô consciente - que adquire vida mais ou menos como se fosse um recém-nascido no futuro de Filhos da Esperança - pode encontrar numa sociedade pós-industrial como a de Chappie? Essa é a questão que percorre o filme, um conto de fadas de evidente parentesco com Pinóquio (o criador como bússola moral, as tentações da vida à margem) mas que no fim talvez tenha mais em comum, na sua postura crítica diante de uma suposta normalidade, com a fábula subversiva de Shrek.
Se Chappie é o melhor filme de Blomkamp - embora os roteiros didáticos do diretor continuem sofrendo com excessos de exposição - talvez seja porque a vocação do sulafricano para a narrativa cyberpunk encontre aqui uma história ideal. Não temos a máquina simplesmente como fetiche de ação em um confronto de classes, como em Elysium, mas sim a máquina de fato problematizada numa distopia do presente. Chappie é só mais um indivíduo em busca de identidade nas carcaças de um mundo cada vez mais inorgânico - e quando vemos que a única coisa funcionando no arranha-céu é o luminoso publicitário, percebemos: Blade Runner é agora.
A forma como Blomkamp ocupa e transforma esse cenário, mesmo nos mais básicos planos aéreos de Joanesburgo, é o que torna seu filme especial. Maus atores, Ninja e Yolandi (os rappers do grupo sulafricano Die Antwoord) fazem a contento esse papel da apropriação. Eles representam aqui os tipos marginalizados do cyberpunk, e a estética dos excluídos vai além de reproduzir o ideal de sucesso do gangsta americano. Ninja e Yolandi tomam o espaço público - a fábrica vazia transformada em castelo, único cenário possível nesta fábula - com a consciência e a esperança de que, assim como a cultura globalizada, a ocupação de uma terra morta não respeita fronteiras.
Nunca foi possível deter a globalização, então o vilão de Chappie não seria outro senão um anacronismo ambulante do folclore africano, orgulhoso de suas raízes. Fazer do personagem de Hugh Jackman um tipo de mullet que carrega uma minibola de rugbi e parece sempre vestido para um safari é mais uma demonstração da capacidade que Blomkamp tem de encontrar uma síntese visual que soe verossímil no mundo de hoje e, ao mesmo tempo, esteja no limite do cartunesco. Felizmente, Chappie, mesmo nos seus momentos mais cafonas, é um filme que encontra um equilíbrio raro entre as duas coisas. Ver seu robô em chamas em câmera lenta num terreno baldio é uma imagem ao mesmo tempo futurista e absolutamente cotidiana, feita para assombrar os sonhos.