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Filmes

Crítica

Cherry reúne Tom Holland e os irmãos Russo em jornada de cinismo calculado

Ator atravessa prova de fogo em direção aos filmes de gente grande

13.03.2021, às 11H37.
Atualizada em 13.03.2021, ÀS 11H48

Para a maioria dos atores essa hora chega: quando é preciso, num batismo de fogo, deixar a mocidade para trás e fazer a transição para o mundo dos filmes adultos e densos. Com o suporte dos irmãos Joe e Anthony Russo, Tom Holland protagoniza Cherry na esperança tácita de se tornar o próximo Jake Gyllenhaal. A trama inspirada no romance homônimo de Nico Walker oferece todas as situações limítrofes para essa desconstrução de imagem, e nesse sentido não parece trivial que Holland raspe o cabelo duas vezes ao longo das duas horas e vinte de filme.

Talvez muita gente esqueça que o ator já atravessou prova de fogo bem mais sádica na adolescência, quando atuou em O Impossível, em 2012. Essa bagagem talvez permita que Holland sobressaia em Cherry, no papel de um jovem americano que se alista no Exército depois de levar um pé da namorada, e nessa busca por um novo propósito acaba descobrindo o horror na Guerra do Iraque e seus efeitos de estresse pós-traumático. Graças ao talento de Holland, a ruína física e mental que o personagem atravessa ao longo do filme nos chega com consistência; até o fim é possível enxergar no fundo dos olhos do personagem uns resquícios de quem ele fora antes.

Essa verdade que nos convida à empatia não deixa de ser uma realização duplamente notável do ator, porque, no texto e na direção dos irmãos Russo, Cherry pende o tempo inteiro para o cinismo. A etimologia é muito curiosa; cinismo vem do grego kunismós, a defesa de um estilo de vida canino (“kunós”) que renega convenções e morais vigentes. A trajetória a que os personagens de Cherry são submetidos, numa série de viradas farsescas que aproximam o filme muito mais da comédia de erros do que do drama, tem muito a ver com um condicionamento canino a reflexos rápidos, impensados, descomplicados. Se determinado personagem, de uma hora para outra, é escalado para virar ladrão de banco, o filme não oferece muita saída para esse personagem, de um ponto de vista moral. Vem desse absurdo o potencial de Cherry para a comédia de farsa, porque obviamente não é todo mundo que nasce com vocação para o assalto a mão armada.

Acontece que, ao mesmo tempo em que o filme abraça esse cinismo, em nenhum momento ele deixa de impor sobre os personagens uma visão moral do mundo. É como se dissesse: faça o que tenha vontade, porque afinal não há mais inocência na América, cada um pode construir para si um novo sentido de ser - mas lide com as consequências dessa escolha. Enfim, a hipocrisia. Como é cada vez mais comum no cinema em tempos de obscurantismo, a moral e a mensagem são senhores absolutos, e um filme como Cherry nunca terminaria consagrando um novo estilo de vida sem sentido; é preciso voltar - depois de castigos pontuais - à moral, aos bons costumes.

O que não deixa de ser irônico, no fim, porque Cherry visivelmente tenta dialogar com um certo cinema americano cínico dos anos 1990, uma década que - aí sim - assistiu a histórias reais e fictícias de desesperança e anarquia levadas até o esgarçamento. Colocar Cherry do lado de um filme como Assassinos por Natureza (1994) é constatar que o drama de 2021 interioriza esse discurso do cinismo numa chave anacrônica, postiça.

Assim como Tom Holland quer transicionar para os filmes “sérios”, neste primeiro trabalho pós-Marvel os diretores Joe e Anthony Russo também almejam ser aceitos no mundo dos adultos, e filmam Cherry com um arsenal de soluções estilizadas de câmera, cor e montagem que remetem ao Oliver Stone noventista e aos filmes de David Fincher da segunda metade daquela década. Em certos momentos parece que só falta tocar um nu metal em Cherry.

A narração em off que por vezes quebra a quarta parede, outro recurso desgastado, não oferece muito além de uma reiteração do cinismo seguro, espertinho. Ali o filme deixa de lado, por um momento, a desconstrução da imagem de Holland e volta a se sustentar no charme jovial do atual Homem-Aranha. A transição de carreira, ela nunca deixa de ser plenamente consciente de si, e no fundo é só o que importa ali.

Nota do Crítico
Regular