Como brasileiro, muito me alegra quando, no horizonte cinematográfico nacional, surge uma obra de primeira grandeza, algo que faz diferença não só aqui, e que salta aos olhos do mundo todo. Cidade de Deus (Brasil, 2002) é assim. Pop, polêmica, dura e divertida, a mais nova pérola do cinema nacional, ironicamente, é motivo de orgulho ao explorar um dos nossos maiores fracassos, a violência.
Rodado integralmente nas favelas cariocas de Cidade Alta, Nova Sepetiba e Cidade de Deus, o filme já nasceu polêmico. Como são territórios controlados pelo narcotráfico, a produção precisou de autorização das associações de moradores, que - obviamente - reportam-se aos chefes do crime local. Acertado isso, o acesso às locações foi garantido, com a ressalva de que deveriam contratar o maior número possível de moradores das comunidades para trabalhar nas filmagens.
Cidade de Deus
Cidade de Deus
Cidade de Deus
Cidade de Deus
Sendo assim, Fernando Meirelles (Domésticas) e a co-diretora Katia Lund (que já tinha experiência em trabalho no morro quando produziu o clipe They care about us, de Michael Jackson) criaram uma ONG chamada Nós do Cinema, que preparou e selecionou 200 moradores das favelas para trabalharem em Cidade de Deus. A experiência foi tão positiva que resultou em apenas um ator profissional na produção, o excelente Matheus Nachtergaele (O auto da compadecida, Buffo & Spallanzani, O que é isso companheiro?).
O filme, uma adaptação do romance homônimo de estréia de Paulo Lins, trata sobre a ascensão do crime na favela Cidade de Deus, que começou sua história como um conjunto habitacional em 1966. Lins, mais conhecido como Buscapé, assim como tantas outras crianças de sua geração, cresceu em meio a um dilema: trilhar o árduo caminho de uma vida honesta ou o sedutor caminho do crime?
A decisão não é fácil e ficar no meio pode ser até mais perigoso. Buscapé - no filme, Alexandre Rodrigues - que o diga! Afinal, é exatamente nessa posição que ele se encontra no início do filme. De um lado, a PM. De outro, o pessoal do tráfico. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, lembra o garoto. Como se diz que em momentos de perigo, toda sua vida passa diante de seus olhos, Buscapé começa a relembrar sua infância e como todas as suas escolhas levaram-no até aquele momento crítico.
A direção de Cidade de Deus é primorosa e cheia de recursos. Em certas passagens, é tão pop e inovadora quanto os melhores exemplares hollywoodianos. Em outras, beira o documentário de tão realista. O roteiro, lapidado à exaustão, traz passagens estarrecedoras, capazes de fazer a audiência prender a respiração e afundar-se na cadeira quase como se estivesse num filme de terror. A diferença aqui, é que os monstros têm semblantes muito mais familiares e não foram criados por um cientista louco ou experimento nuclear, e sim - como somos forçados a enxergar -, por todos nós.
Uma injeção de realidade obrigatória.