Filmes

Crítica

Cosmópolis

Que tipo de mutação pode acontecer em um mundo imaterial?

06.09.2012, às 20H00.
Atualizada em 17.05.2019, ÀS 15H38

Os filmes de David Cronenberg frequentemente tratam de transmutação entre homem e máquina, um processo ora surrealista (nos filmes de horror como Videodrome e eXistenZ, com seus revólveres de carne e os corpos usados como videocassete ou joystick) ora realista (as taras de Crash são tipicamente cronenberguianas embora não tenham nenhuma mutação manifesta). Cosmópolis, o romance de Don DeLillo sobre um gênio milionário de 28 anos que raciocina na velocidade dos fluxos do mercado de ações, se presta bem a esse universo... Mas como transmutar em corpo uma máquina - a nuvem digital de dados que nos cerca - que não tem forma?

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Esse é o desafio a que se dispõe Cronenberg, um cineasta visivelmente em transformação. John Carpenter desdenha, diz que o canadense começou a se levar a sério demais, mas filmes como Marcas da Violência e Um Método Perigoso apontam para uma depuração - não apenas uma interiorização - daquele cinema de horror que tratava da violência das mutações em um nível epidérmico. Embora Cosmópolis tenha muito em comum com outros trabalhos do cineasta (o fetiche do automóvel de Crash, a vida vista pela TV/janela e o desfecho idêntico ao de Videodrome), é também seu filme mais "depurado", por assim dizer, no sentido em que sua dramaturgia é mínima, embora o texto seja verborrágico.

Basicamente acompanhamos em Cosmópolis a jornada de Eric Packer (Robert Pattinson, papel difícil, atuação adequada), o gênio milionário, em sua limusine durante um dia especialmente congestionado pelas ruas de Manhattan. Eric quer ir ao barbeiro cortar o cabelo, e, enquanto não chega, aposta na Bolsa uma jogada arriscada contra a moeda chinesa. À medida em que ele faz reuniões dentro do carro, discutindo desde a natureza da modernidade até os clichês dos suicidas, sua fortuna vai diminuindo - e Eric se transforma.

O filme comprime ainda mais que o livro as cenas das reuniões. A ideia é nos situar no tempo suspenso do protagonista, onde não se sentem as horas. Mas eis que o tempo alcança Eric. O que está em curso aqui é menos uma metamorfose, como se esperaria, e mais uma súbita tomada de consciência da mortalidade (outro tema bem ao gosto do diretor). Eric fala idiomas, sabe de tudo, mas aos 28 anos não consegue lidar com a descoberta da morte - seja a de um rapper que ele admirava, ou o fim da sua fortuna, ou sua possível morte em decorrência de um diagnóstico de "próstata assimétrica". Eric vive num mundo etéreo movido por ciclos iguais (uma personagem ressalta que ao redor do planeta, por causa dos fusos, o mercado de ações nunca fecha) e nesse mundo, autosustentado e fadado a se repetir, descobrir a morte é o mesmo que descobrir a História.

É uma mutação diferente, portanto, daquelas a que estamos acostumados nos filmes do diretor, e Cronenberg não tateia sem tropeços essa transformação que ocorre mais na percepção do mundo (o antídoto da imaterialidade da máquina seria a passagem do tempo?) do que na experiência vivida com o mundo físico em si. Não por acaso, a única mudança pesada que o diretor faz em relação ao livro é a eliminação do último e redentor encontro de Eric com sua esposa, em que DeLillo dava ao protagonista a oportunidade de experimentar o mundo da forma mais óbvia possível: nu ao ar livre. Para Cronenberg, que nessa hora nos poupa de ver Robert Pattinson pelado, a única forma de Eric Packer vivenciar de verdade o mundo material é, como em todos os filmes do cineasta, por meio da violência.

Nota do Crítico
Bom