Imagino que seja um júbilo para um cineasta classicista poder dirigir um filme ambientado decadas atrás. Mais exatamente, ambientado na época em que Clint Eastwood nasceu.
a troca
changeling
a troca
A Troca (Changeling, 2008) se baseia em um caso real ocorrido entre 1928 e 1930. Certo sábado, em Los Angeles, Christine Collins (Angelina Jolie) saiu para trabalhar e deixou seu filho Walter em casa. Na volta não o encontrou. Os dois travellings que antes mostravam o menino de longe, um na porta da escola e outro na janela de casa, enquanto a câmera se afastava sob o ponto de vista dos olhos da mãe, já prenunciavam o pior. A imagem de Walter desaparecia aos poucos para não mais voltar.
O caso ficou famoso na realidade porque o departamento de polícia de L.A. encontrou, diz, um menino homônimo ao desaparecido e presumiu que era o filho de Christine. Daí a troca do título: para ficar bem diante da imprensa, a criticada polícia da cidade se apressou em jogar o "filho" no colo da mãe. Christine, evidentemente, desde o primeiro momento apontou que aquele não era o verdadeiro Walter.
No filme, quando o oficial responde para ela "take him home on a trial basis" (algo como "leva pra casa pra experimentar"), você vê que a coisa começa a degringolar.
O parentesco imediato é com Sobre Meninos e Lobos. Ambos pegam um drama de rapto infantil para discutir transmissão de culpa. E ambos têm criação classicista à moda Eastwood - poucas tomadas, instruções práticas e econômicas aos atores, filmagens que acabam sempre antes do combinado, o que acaba rendendo momentos desiguais de performance do elenco. Em A Troca, porém, pelo próprio momento histórico, Eastwood parece realizar seu filme mais clássico em termos formais - com direito a som quebrado entre planos para dinamizar a exposição.
E eu nunca tinha atinado para o fato de que a obsessão de Eastwood pelo chiaroscuro é um resquício do filme noir dos anos 40 (que por sua vez é uma adaptação do expressionismo alemão dos anos 20). Pegue, por exemplo, a cena anti-naturalista do interrogatório do menino, com meio rosto iluminado pela tempestade, ou o ângulo com que Eastwood filma Jolie de chapéu para encobrir seus olhos. Aquela forma de esconder semblantes (no caso de Jolie, restam-lhe só os lábios para contar história) é noir puro!
Que se faça um parênteses para comentar a construção da personagem. É uma atuação cheia de cacoetes, a de Jolie, como sempre, mas são tiques propositais. Estamos falando de uma personagem bem feminina - sempre educada ao telefone e de modos leves, pela forma como toca o rosto no choro ou mesmo como pede debilmente para um bonde na rua parar - que de repente se descobre num mundo de homens. O vermelho do batom dela, contrastando com a falta de cor dos paletós masculinos, é de uma agressividade febril, como se fossem alienígenas uns aos outros - o que acentua a essência kafkiana da premissa.
Advogando por princípios
Como naquela época não havia Guerra do Iraque, hoje sempre que lhe perguntam se A Troca critica o bushismo Eastwood diz que sempre houve e ainda há corrupção. Mas é um filme nos anos 20, diz ele, e ponto final. Para quem olha de fora, porém, é legítimo enxergar ressonância com a intransigência do governo Bush. A maneira falsamente idiota como a polícia de Los Angeles acredita na sua própria mentira equivale à de quem botou tanques no deserto atrás de armas de destruição em massa.
Mas não tomemos esse caminho - mesmo porque filmes são produtos de seu tempo, há política em tudo e, afinal, essa leitura é apenas a mais imediata. Talvez seja mais caro a Eastwood vermos A Troca como uma reafirmação de valores que hoje estão em desuso na sua América. É sintomático, por exemplo, que a única personagem do filme disposta a socar alguém para vingar Christine seja a prostituta (que já está à margem da lei mesmo). Na sua busca, Christine se atém às vias legais até o final porque crê nas fundações do sistema.
E se ela, como Eastwood, acredita que a corrupção não está nas instituições, mas naqueles que as compõem, nada mais natural que dedicar todo o terço final do filme a expurgar essa corrupção. O texto do roteirista J. Michael Straczynski (conhecido dos fãs de quadrinhos pela sua passagem conturbada pelo Homem-Aranha) é implacável nesse sentido. Não há recompensa fácil, não há milagres à Frank Capra. A certa altura um personagem de má índole confessa ser um fã de Christine porque ela ousou desafiar o sistema. Mas, como Christine repete à exaustão, ela não quis desafiar nada, quis apenas o filho de volta.
Falando assim, parece um moto simplório, mas é uma questão profunda de princípio. E o cinema clássico é isso aí, em essência: motos simplórios, questões de princípio.