A geração passada se lembra até hoje onde estava no dia em que o homem pisou na lua. A atual tem duas datas bem mais tristes para guardar: 11 de setembro de 2001 e, antes dela, 1º de maio de 1994. Foi naquele cinzento domingo que uma batida, algo até que corriqueiro entre os esportes de motor, entristeceu o mundo. O capacete amarelo acostumado a vitórias estava imóvel e tombado mostrando o fim de um herói.
Senna
Senna
Senna
A morte de Ayrton Senna da Silva (1960-1994) é parte do documentário Senna (2010), mas não é o seu assunto principal. O filme da britânica Working Title, mais conhecida por comédias românticas como Quatro Casamentos e Um Funeral, reforça a ideia de Senna como um mito, alguém que beirava à perfeição não só dentro das pistas, mas também fora delas. Diferente do formato tradicional do gênero, Senna não tem entrevistados parados, olhando para a câmera. Usando o vasto acervo das TVs que cobrem a Fórmula 1 e, pela primeira vez, os arquivos da Família Senna e da FIA (Federação Internacional de Automobilismo), o longa-metragem reconstrói a carreira de Senna desde um campeonato mundial de kart, em 1978. "Aquilo era corrida de verdade. Não havia política envolvida", relembrava Senna.
Senna era viciado em vencer. Em um dos momentos ele diz que quando estava no cockpit era como se estivesse dentro de um túnel e que todo o mundo ao seu redor deixasse de existir. No mundo real, porém, as coisas eram bem diferentes, cheias de interesses comerciais e políticos. Ele começou a perceber isso no já famoso GP de Mônaco de 1984, em que levou sua limitada Toleman até o pódio - e só não venceu porque a corrida foi encerrada antes da hora, com vitória de Alain Prost. O francês se tornaria seu maior rival e protagonizaria disputas dentro das pistas e nos bastidores, como as conturbadas decisões das temporadas de 89 e 90 no Japão. Mas se Prost é o Darth Vader, Jean-Marie Balestre (presidente da FIA na época) é o Imperador Palpatine, que em uma reunião de pilotos não pensa duas vezes antes de bravejar "A decisão correta é a minha decisão".
São momentos como estes, nunca antes vistos pelo grande público que fazem a diferença em relação a outros documentários ou reportagens sobre os bastidores da Fórmula 1. É ali que o diretor Asif Kapadia (O Retorno) e o roteirista Manish Pandey conseguem dar o realismo que um projeto destes pede. Não daria para recriar um Nelson Piquet fazendo um comentário sarcástico e ver a inquietação com que Senna recebe o comentário. Mas não espere mais sobre as rivalidades com o brasileiro ou o inglês Nigel Mansel, muito menos fofocas sobre seus relacionamentos com Xuxa ou Galisteu - embora a Rainha dos Baixinhos protagonize um dos momentos de alívio cômico do filme.
Seguindo à risca a ideia dos três atos, o filme mostra o desenvolvimento (os primeiros anos na F1, a primeira vitória, a mudança para a McLaren), clímax (o tri-campeonato mundial conquistado no Japão e que lhe rende até hoje o status de semideus por lá) e o desfecho. Antes de chegar ao fim de semana do GP italiano, os cineastas mostram sua mudança para a Williams em 1994, a desconfiança de que a Benetton de Michael Schumacher usava tecnologia não permitida e seu descontentamento com o próprio carro. O drama toma de vez o paddock em Ímola, quando, no mesmo fim de semana, Rubens Barrichello bate forte na sexta e o austríaco Roland Ratzenberger morre no sábado. Parecia um aviso.
O acidente é mostrado inicialmente de forma bastante racional, para só depois mostrar a emoção dos pilotos, dos brasileiros, de todo mundo que acompanhou sua carreira até ali. Neste momento, lágrimas invevitavelmente driblarão as chicanes. E assim Ayrton Senna é canonizado de vez. Se ele cometeu deslizes, se algum dia desejou mal a alguém, tudo foi perdoado. De herói, ele virou mito. O documentário, assim como vida do piloto, tem seus lados negativos, mas se os diretores optaram por não mostrá-los ao público, faremos o mesmo relevando os pequenos deslizes do filme. Tudo em nome das manhãs de domingo que não são mais as mesmas.
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- Veja entrevista com o diretor Asif Kapadia e o roteirista Manish Pandey (sexta)
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