Todo mundo tem um truque na manga hoje em dia. Na era do cinema de horror definida pela atuação de duas produtoras e distribuidoras (a A24 de um lado, a Blumhouse de outro) muitas vezes vistas como pólos opostos do ponto de vista artístico, o ponto de toque entre quase todo filme dessa safra talvez esteja na necessidade de se agarrar em alguma muleta estilística - alguma distorção cronológica, algum cacoete de montagem ou direção, alguma ambientação de época ou lugar que posicione a obra como separada (mas não separada demais, porque ainda é preciso “dar ao povo o que ele quer”) de suas colegas de gênero. Cuckoo: O Medo Chama, de certa forma, não foge desse vício contemporâneo… mas, pelo menos, o incorpora com inteligência.
No longa, a adolescente Gretchen (Hunter Schafer) se muda com o pai, a madrasta e sua irmãzinha mais nova para um resort nos Alpes alemães, comandado com mão de ferro pelo excêntrico Herr König (Dan Stevens, em mais uma performance indelevelmente Dan Stevens). Os pais de Gretchen são velhos conhecidos de König, trabalham para ele, embora a função que desempenham no resort permaneça difusa, e a jovem rapidamente começa a notar que as muitas regras do local escondem algo sinistro por trás delas. Para piorar as coisas, a investigação meio acidental da protagonista se desenrola enquanto a obsessão de König pela irmã dela, uma menina muda por motivos misteriosos, vai progredindo de maneira alarmante.
O diretor e roteirista alemão Tilman Singer (Luz), que faz aqui sua estreia em Hollywood, mostra firmeza em algumas escolhas estéticas muito específicas. Ao lado de dois colaboradores que trouxe de seus filmes europeus, o cinematógrafo Paul Faltz e o designer de produção Dario Mendez Acosta, ele cria em Cuckoo um universo localizado prazerosamente no lusco-fusco entre o contemporâneo e o setentista, seja no filtro granulado da fotografia, no uso indiscriminado de zooms para realçar a tensão de cada cena, ou na concepção new age ascética da casa de funcionários luxuosa reservada para os pais de Gretchen - um contraste radical com a decoração temática cafona do resort e dos chalés localizados ao seu redor.
É um trabalho de precisão inegável, mas principalmente um trabalho que se impõe como essencial na construção de suspense do longa. Cuckoo não precisa nos convencer verbalmente que este lugar para onde o pai e a madrasta de Gretchen a levaram - bastante contra a sua vontade, após a morte da mãe - é altamente suspeito, ou que o desajuste que a protagonista sente é mais do que angústia adolescente: a maneira como ele é filmado, os cenários pelos quais Gretchen caminha, já falam o bastante. É nessa aliança entre estetização de alto conceito e narrativa que o filme nos conquista, e encontra sua maneira de evocar um incômodo que também serve como discurso.
Isso porque, na raiz de sua concepção, Cuckoo é uma história de revolta contra o vício humano de querer controlar a natureza, mesmo enquanto se coloca como aliado dela. Os vilões da trama urdida por Singer são homens que, por baixo da lenga-lenga sobre integração ao mundo natural, até preservação dele, escondem uma necessidade compulsiva de se firmarem como seus donos - imperadores benévolos que, apesar de todas as boas intenções, nunca abdicam ao seu trono no topo da cadeia alimentar de um território que eles veem como ilimitado. Predadores disfarçados de visionários, líderes de culto vestidos em simulacros de humildade… enfim, lobos em pele de cordeiro, se você preferir a expressão popular. Nada mais anos 1970 do que isso.
E é justamente na necessidade de se desviar dessas armadilhas, e na capacidade de ver através delas, que a Gretchen de Hunter Schafer emerge como heroína. A atriz de Euphoria traz alguma resiliência para a personagem, e sabe revelar as afeições que se escondem por trás de seu exterior de adolescente revoltada de forma que não lhe custa a simpatia do público… mas também há algo de unicamente queer na interpretação que ela faz da desconfiança imediata de Gretchen. É o olhar de quem está de fora para um mundo que só faz sentido se você está “por dentro” dele, o atrito imediato dessa uniformização com uma identidade que se recusa a ser uniformizada - e que, até por isso, é muito mais próxima à natureza do que seus antagonistas jamais serão.
O trunfo de Cuckoo, veja só, está na intencionalidade de suas escolhas mais descentralizadas. Seus truques não deixam de ser truques, mas lembram que toda boa enganação existe para nos revelar algo que não veríamos sem ela.