O que faz uma musa é o olhar daquele a quem ela inspira. Por definição, então, não existem musas por si só. É um conceito que pode soar machista porque implica posse, e desde Crime Delicado Marçal Aquino e Beto Brant têm se dedicado a problematizar esse tipo de relação nos filmes do diretor, que Aquino roteiriza.
eu receberia as piores noticias dos seus lindos lábios
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Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios, o mais celebrado romance do escritor, já havia servido de inspiração para Brant e o codiretor Renato Ciasca fazerem O Amor Segundo B. Schianberg. Agora eles partem para a adaptação literal. É o mais ambicioso e difícil trabalho do trio, como se toda a obsessão temática que os acompanha desde 2005 - ano da conclusão de Crime Delicado e da publicação de Eu Receberia... - fosse uma preparação para este filme.
Eu Receberia... conta a história de um triângulo amoroso entre o fotógrafo Cauby (Gustavo Machado), a ex-prostituta Lavínia (Camila Pitanga, possuída) e o pastor Ernani (Zécarlos Machado) no Pará, onde uma população ribeirinha assiste ao desmatamento da floresta. A trama não linear vai e vem no tempo para mostrar como Ernani tira Lavínia das ruas e como, já casados, os dois agem em defesa da comunidade na Amazônia - onde, morando a trabalho, Cauby se encanta com a mulher.
O filme elimina personagens secundários do livro para se concentrar no triângulo. As únicas cenas que não envolvem as relações do trio são aquelas com a presença do jornalista Viktor Laurence (Gero Camilo) - e ainda assim os insights de Viktor servem para iluminar o que acontece no triângulo. A reflexão sobre o filme, portanto, já é diegética, acontece dentro da ação. Não por acaso, Viktor, com seu comportamento de comentarista onisciente, será responsável pelo evento que desata os nós do triângulo.
A concisão extrema - Eu Receberia... se desenrola em poucas cenas, ligadas por elipses bem espaçadas - acaba gerando associações frágeis (a "posse" de Lavínia relacionada à questão da propriedade na Amazônia) mas torna mais urgente e focada a discussão sobre a apropriação da musa.
A divisão é clara. Cauby, o fotógrafo, faz de Lavínia seu objeto (o filme já abre com ela sendo fotografada, como se Lavínia só existisse diante de nós filtrada pela lente dele). Já Ernani, o pastor, encontra na prostituta uma voz a ser desperta pelo seu dom da palavra, o que também a torna sua musa (aquela Lavínia de Cauby, que além de exuberante mostra-se bem articulada, sem dúvida é também a Lavínia de Ernani).
As intensas cenas de sexo de Eu Receberia... acontecem justamente após os momentos de "negociação" da posse: depois da sessão de fotografia de Cauby e depois que Ernani ora pela alma de Lavínia. Uma musa constituída pela imagem e pelo verbo, pronta a ser apreciada. Sem essa apreciação - situação que Lavínia enfrenta no filme quando não tem Ernani ou Cauby por perto - a personagem literalmente se desarticula.
Parece uma equação simples, mas na "vida real" a apropriação da musa (ou qualquer outra idealização) obviamente é mais complexa. O crítico de teatro vivido por Marco Ricca em Crime Delicado achou que fosse, sim, bastante simples - afinal, como crítico, ele reduz objetos a uma razão analítica - e quebrou a cara. Em Eu Receberia... a violência também surge para mostrar aos personagens que uma relação negociada não é uma relação definida.
"Não há paixão sem luta", diz um personagem a certa altura. "Santa é a carne que peca", emenda Viktor, na fala mais espirituosa do filme. O corpo pode ser um santuário (só pra ficar no léxico religioso, que no fim das contas nem é tão diferente assim do vocabulário de um esteta diante de seu objeto de culto), mas provar essa adoração do corpo exige sacrifícios.