Mike (Josh Hutcherson) está pronto para estrelar Five Nights at Freddy’s - O Pesadelo sem Fim. Perdeu os pais, perdeu o irmão, perdeu o emprego, logo vai perder a casa também, se não aceitar a vaga suspeitíssima de vigia noturno na assombrada pizzaria desativada que dá nome ao filme. É o tipo de personagem cujo arco de superação de trauma ganha mais valor, nos filmes de terror, com as hipérboles de uma vida miserável. Mike dissocia a olhos vistos.
Mike tem, porém, a luz de um sermão muito espirituoso quando sua irmã mais nova, Abby (Piper Rubio), se isola no quarto e se recusa mais uma vez a jantar. “Você não vai comer? Tudo bem, mas você não vai crescer e vai ficar pra sempre nesse corpo de criança e nunca poderá andar nos brinquedos de adulto no parque de diversão”, ameaça Mike. É o tipo de diálogo que se esperaria dos irmãos Grimm, cujos contos de fada soturnos se tornaram clássicos ao estabelecer pontos de contato e transferência entre os universos infantil e adulto. Five Nights at Freddy’s tem essa qualidade: é um filme consciente do que se perde na travessia do fim da inocência.
Essa é a segunda de duas cenas muito rápidas que estabelecem toda a dinâmica entre os irmãos no início do filme; para além de serem muito convincentes, esses diálogos dão o tom do que Five Nights at Freddy’s almeja em termos de dramaturgia, que é vivenciar um luto precoce da infância. Quando Mike sonha todas as noites com maneiras de desvendar o desaparecimento do seu outro irmão, na verdade ele busca resgatar sua própria inocência perdida, e todo o conflito sugerido no filme envolve tirar isso do terreno dos sonhos e trazer para o plano do real. A repetição de “Talking in your Sleep” dos Romantics ao longo do filme se presta a induzir um sonhar acordado.
Quem espera que essa adaptação ao cinema dos jogos dos bichinhos animatrônicos assombrados faça mais um terror de sustos na “casa maluca” - subgênero tradicional que há décadas adequa os códigos do terror para o público adolescente - talvez se impacte ou se frustre com o fato de Five Nights at Freddy’s estar muito mais interessado nos seus personagens principais do que nas atrações da sua ambientação. Mike e Abby atravessam as provações do filme com um tipo de elo dramático, transformativo, que costumamos ver nos filmes de M. Night Shyamalan: combater os terrores dos adultos recuperando da infância a capacidade algo sagrada de fabular, de materializar no mundo o que tratamos como exclusivo do onírico ou do sobrenatural.
Five Nights at Freddy’s contrapõe imagens que, em outro contexto, formaram os pesadelos de Shyamalan, como as florestas do Nebraska que lembram A Vila (nos sonhos de Mike) ou os corredores amarelados de umidade do Freddy’s que lembram a claustrofobia de Fragmentado. A diretora Emma Tammi não precisa ter feito isso de propósito; são imagens de assombro que já transcenderam sua origem e agora constituem um imaginário coletivo que carregamos conosco - e que frequentemente voltam a se manifestar, como nos sonhos, de maneira inconsciente. O que é consciente na encenação de Tammi é o reforço visual, a crença num tipo de hipnose que pode de fato tornar imagens realidade (seja a foto do Nebraska que Mike colou no teto do quarto, sejam os chuviscos dos monitores do Freddy’s que induzem ao delírio noturno).
É muito raro ver hoje em Hollywood um filme que se articula visualmente dessa forma, porque a primazia do texto (e das receitas de exposição, de construção de mundo, de organização de reviravoltas) tem cada vez mais sufocado esse estímulo à atenção e ao olhar. Five Nights at Freddy’s não está imune a isso, e o filme periga se desmanchar em inconsistências de roteiro quando recorre às saídas que sua trama complicada impõe. Toda a presença funcional da policial Vanessa (Elizabeth Lail) em cena só existe para que o suspense de abdução vire sobrenatural e depois volte a ser primeiramente um thriller de abdução no fim para amarrar suas pontas. É um esforço meio banal que só parece tirar o foco do que interessa, que é a resposta sensorial e emocional que Mike e Abby dão à existência dos animatrônicos vivos.
No geral, o saldo é positivo, porque nem sempre as produções da Blumhouse encontram uma voz própria quando seus filmes de horror aderem à censura mais baixa (PG-13 nos EUA, 12 anos no Brasil). O exemplo recente de M3gan é emblemático, um filme todo pensado em torno das recompensas do gore mas que nunca se entrega de fato a esses prazeres, muito por conta da sua classificação etária mais baixa. Já Five Nights at Freddy’s parece mais bem situado na moldura que escolhe para si, bebendo no potencial do thriller psicológico para tratar seus pavores como uma coisa mais insidiosa, algo que leve consigo o poder da sugestão.