Do Gato Félix aos Looney Tunes, histórias protagonizadas por animais já eram a base das animações americanas há tempo. Mas nos últimos 30 anos Disney e DreamWorks exploraram tão a fundo a dinâmica antropomórfica que nós saímos de “leões cantando na selva” para “todo tipo de espécie animal vivendo e trabalhando como humanos numa metrópole” sem sobressaltos. Se há uma linha de raciocínio que conecta um destes filmes a outro, isso é algo que Flow rejeita.
Se filmes como Zootopia e Fantástico Sr. Raposo apresentam animais humanizados que revertem para seus instintos primitivos tipicamente quando há uma chamada pelo humor ou para separá-los entre heróis e vilões, a animação de Gints Zilbalodis prefere olhar os bichos como o que eles são, por natureza. É claro que Flow adiciona um grau de personalidade aos seus personagens, tipicamente relacionado ao nosso entendimento daquela espécie de animal, mas eles jamais falam. O Gato que protagoniza o filme é independente. O Cachorro é brincalhão. A Garça é orgulhosa. E assim vai.
Esse minimalismo é acompanhado pelo estilo de animação, que de comum com as megaproduções de estúdios hollywoodianos tem apenas o uso do 3D. O visual é melhor definido pelo pouco uso de texturas, em sua maioria chapadas e de cores desbotadas – a melhor comparação é com a trilogia de games de Fumito Ueda, mais conhecido por Shadow of the Colossus e The Last Guardian. A escolha confere ao longa o ar de mistério. Isso permanece até o fim da aventura, e é engrandecido pela presença de elementos incrementalmente fantasiosos que o grupo de animais acompanha na sua inesperada jornada.
Esta começa com uma inundação na floresta. A imagem imediatamente traz à mente questões climáticas, mas o mundo de Flow sugere que, se um dia houve humanos aqui, eles se foram há muito tempo. Para trás ficaram utensílios, monumentos e casas que geram fascínio tanto no Gato quanto no espectador. A câmera de Zilbalodis permanece na altura do animal principal enquanto ele sobrevive à água e aos perigos que ela traz se juntando com Cachorro, Garça, Capivara e Lêmure. Cada um dos cinco parece ser um tipo de rejeitado dentro de sua espécie, e resta a eles trabalhar juntos para sobreviver aos encontros com tempestades, rivais e às grandes criaturas marinhas que invadem terra firme.
Enquanto navega pelos rios recém-formados nesse tsunami, o filme não demonstra muito interesse nos tons emotivos de uma Pixar, e apesar de ocasionalmente intensificar o risco e nos deixar temendo pela vida dos nossos favoritos, Zilbalodis opta pelo fascínio e divertimento mais do que pela narrativa comovente. É claro que o grupo tem altos e baixos, e Flow sem dúvidas argumenta que, mesmo que não consigamos deixar nossa natureza inteiramente para trás, há valor em sair da zona de conforto e contar com o outro. O foco, contudo, é o descobrimento do mundo através dos olhos de seus mais frágeis habitantes.
CineCanibal
A escala das estruturas, os desafios a serem completados em quatro patas, o deslumbramento de ver o fantástico – assistir a tudo isso da perspectiva do Gato intensifica em nós mesmos o faro pelo espetáculo. Há, é claro, valor em ver o protagonista se abrir aos poucos para o bobalhão Cachorro, incansável em suas tentativas de amizade, e a simplicidade desses comportamentos pinta seus atos mais grandiosos de significado, mas o maior sucesso de Flow está nessa progressão em direção ao desconhecido.
Vencedor de três prêmios no Festival de Annecy, Flow ainda não tem distribuição no Brasil.