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Crítica

Golda esvazia a guerra para fazer cinebiografia impressionista

Helen Mirren estrela o longa sobre a primeira-ministra de Israel que foi maior que a vida

30.08.2023, às 18H04.

Toda biografia implica alguma dose de mitificação, talvez porque essas próprias narrativas dependam disso para se validar. Não que a história de Golda Meir (1898-1978) precise ser aumentada; além de ter sido a única mulher a ocupar o cargo de primeira-ministra de Israel (e a primeira no Oriente Médio, no final da década que viu as primeiras mulheres assumirem posições desse tipo no mundo todo, os anos 1960), ela esteve à frente do país “recém-nascido” no seu conflito mais agudo, a Guerra do Yom Kippur, em 1973, quando Israel foi invadido pela Síria e pelo Egito.

Golda Meir saiu gigante da guerra, testada e aceita como estadista, ainda que tenha anos depois testemunhado para explicar em juízo porque o seu exército demorou para reagir à ameaça nas fronteiras dos dois países vizinhos. O relato desse testemunho no tribunal serve no filme Golda - A Mulher de uma Nação para balizar a reflexão memorialista em primeira pessoa. Interpretada por Helen Mirren, Golda surge em cena em 1973 plenamente consciente de si mesma, de sua função pública, de sua importância histórica; o formato narrativo dos flashbacks justifica a autoconsciência e a torna um ingrediente integral do filme.

Obviamente, Golda Meir não é a primeira biografada a estar plenamente consciente de seu papel; isso parece se inflamar nos filmes focados em personalidades políticas. O caso de Winston Churchill e O Destino de uma Nação (2017) é o que serve essencialmente de modelo para Golda, dada a sua validação no Oscar e a estatueta concedida ao ator Gary Oldman por sua atuação deveras autoconsciente. O diretor de Golda, Guy Nattiv, inclusive foi promovido a dirigir este longa-metragem de prestígio depois de vencer o Oscar pelo curta Skin em 2019.

Uma certa disposição é esperada do espectador, portanto, diante de situações que se impregnam de solenidade, mesmo as mais mundanas, das trocas rotineiras de olhares aos cigarros fumados em intervalos de reuniões. Mirren contribui com uma interpretação bastante contida, tanto na expressão corporal quanto na impostação de voz, porque todo o trabalho cerimonialista de engrandecer o que acontece no filme é feito na câmera e nos tempos dos planos. Nattiv tem uma preferência pela grande-angular que lembra os filmes de Alejandro Iñárritu e Yorgos Lanthimos; no mais, essa parece ser a lente que melhor define o cinema feito pelos diretores incensados do século 21, com sua estética opressiva de vigilância total.

Por suas decisões de câmera e de roteiro, Golda serve de exemplo para demonstrar como uma cinebiografia compila recursos formais no objetivo da mitificação. Fazer da sua biografada o objeto geometricamente central dos planos (seja na grande-angular, seja nos planos mais abertos envolvendo uma dúzia de personagens) é só o primeiro passo desse processo. Nas suas licenças poéticas, Nattiv faz de Golda Meir praticamente uma figura mediúnica; em passagens-chave do filme, ela sonha ou delira acordada com a guerra e seus efeitos. A finalidade é sugerir não apenas que a primeira-ministra tem atuação decisiva no episódio, mas principalmente que ela é a pessoa que mais sente. A mulher no mundo dos homens.

Isso torna Golda mais interessante como filme na medida em que essa escolha impressionista - tratar a protagonista como uma antena de sensações, como se a guerra a atravessasse no próprio front de batalha - traz embutido um esvaziamento da guerra em si. Nattiv só encena o conflito indiretamente, seja quando um ministro testemunha as luzes do front de helicóptero, seja quando tanques e mísseis são vistos e ouvidos num radar ou pelo rádio. Aqui a Guerra do Yom Kippur parece acontecer como um conflito de videogame - uma realidade de incomensurável implicação moral que o mundo só passou a viver depois de 1990, quando a Guerra do Golfo se desenrolou friamente à distância e os nomes mais ouvidos eram os mísseis Scud e Tomahawk, transformados em vagalumes pela transmissão da TV. Ao esvaziar a guerra de sua própria materialidade, para concentrar seus efeitos imaginados na figura de Helen Mirren (as imagens chuviscadas da TV se tornam parte do delírio mediúnico), Golda toma uma decisão cujo fundo é essencialmente moral.

Guy Nattiv não é cego ao sofrimento dos combatentes; seu filme termina com um texto “dedicado aos homens e mulheres que lutaram na guerra”. A ideia da morte perpassa o longa inteiro: nos dedos amarelados de nicotina de Golda, nas imagens hospitalares recorrentes, na própria licença poética de fazer a primeira-ministra atravessar de maca o necrotério sempre que vai passar por um exame médico. Golda Meir pode ser maior que a vida mas sua realidade no filme é lidar com a vizinhança da morte, e por isso mesmo a personagem mantém num caderno os números de todos os caídos no front, como um autolembrete. Mas omitir a materialidade da guerra tem seu peso. 

No fim, talvez os caminhos tomados por Golda falem menos sobre a guerra e mais sobre o fazer da política como um exercício de poder, ainda que na sua fragilidade Golda Meir não aparente exercê-la. Em última instância, a guerra é a expressão máxima desse poder, mediúnico ou não.

Mostrar a guerra de fato e aterrar a experiência de Golda em algo mais mundano do que o isolamento do terraço do prédio, o isolamento da narrativa-delírio, talvez fosse uma solução mais apropriada para um país que em todas as suas questões sempre colocou a terra, a solidez do deserto, como seu bem mais almejado e caro. É o que fez Amos Gitai, por exemplo, quando narrou a Guerra do Yom Kippur como uma sofrida vivência do mundano no filme O Dia do Perdão (2000). Golda vai em sentido oposto; seu lugar é o do panteão, e se o filme induz o espectador à vertigem com sua estilização do delírio, é porque crê que o ar rarefeito seja o lugar do poder. Há nisso uma visão de mundo sobre a política e os políticos, e cabe questionar: política se faz na altitude ou se faz no chão?

 
 
Nota do Crítico
Bom