A farsa é uma das formas de encenação mais permeáveis, porque permite fazer crítica social sem deixar de entreter o público com seu suposto descompromisso, fosse na França dos falsos bons costumes, alvo de Molière, ou na Inglaterra do teatro de aparências, de Oscar Wilde. No caso de Golpe Duplo (Focus, 2015), produto de uma Hollywood avessa a compromissos, o que fica da farsa é o seu caráter extravagante.
O longa escrito e dirigido por Glenn Ficarra e John Requa conta a história de um bandido veterano (Will Smith) que se envolve amorosamente com uma novata (Margot Robbie) no crime, em um golpe bem-sucedido em Nova Orleans, durante o Super Bowl. Anos depois desse primeiro encontro, eles se cruzam novamente - o lugar agora é Buenos Aires e o alvo, Rodrigo Santoro - e precisam lidar com as complicações de viverem num mundo de mentiras.
Requa e Ficarra já haviam trabalhado com a farsa para falar de negócios e amor em seus dois filmes anteriores, O Golpista do Ano e Amor a Toda Prova. Nos dois casos, e de novo agora em Golpe Duplo, a ideia é estabelecer, numa América que celebra os self made men diariamente, especialmente aqueles que triunfam na ilegalidade, que apenas as paixões podem desestabilizar a harmonia do capitalismo.
É uma premissa que já implica um comentário social, mas dos três filmes citados, Golpe Duplo é o que menos parece interessado nesse tipo de abordagem. A criminalidade, apresentada ao espectador pelo narrador Will Smith com seu charme de palestrante, é mas um dado consumado: apenas mais uma das corporações americanas, um negócio de família e tradição como a Ford ou o Wal-Mart, azeitada pela utopia do dinheiro fácil e do lucro compartilhado em igualdade.
Que o vilão de Golpe Duplo não seja o novo empresário chinês, como se esperaria, e sim personagens de uma velha ordem mundial (os herdeiros do automobilismo, Santoro e seu rival australiano) diz bastante sobre essa imagem que Ficarra e Requa fazem da máquina americana, cujo funcionamento é posto em risco apenas por coisas igualmente velhas e tradicionais, como entregar-se a uma paixão.
Estabelecida essa premissa, Requa e Ficarra têm dificuldade em desenvolvê-la, porque sua farsa se entrega como tal logo no começo do filme. Ao criar um acordo com o espectador de que Golpe Duplo é de fato uma farsa, na resolução do golpe do Super Bowl, a dupla tira um pouco da sua trama de assalto a capacidade de envolver o público. E então passamos a questionar mais os acasos e as reviravoltas (que ademais são bem forçadas, como a cena da colisão do carro). É como se fosse um ilusionista que revela seus bastidores, quando na verdade o grande truque da farsa é desenvolver uma cumplicidade com a audiência sem lhe tirar a esperança de que algo mágico, "real", ainda pode acontecer.
Isso não impede que, ao fim de Golpe Duplo, coisas "reais" aconteçam, porque afinal estamos num filme de Requa e Ficarra e o final feliz de seus contos morais sempre despertam os protagonistas para a "realidade". Em todo caso, não deixa de ser bem sintomático da Hollywood de hoje que Golpe Duplo entregue seu jogo no meio tempo, desarme seu teatro, entregue ao espectador que o ponto de vista do narrador não é confiável. É como se o filme estabelecesse conosco não uma cumplicidade e sim um acordo de não-agressão. E não pode acontecer nada pior a uma farsa do que tornar-se inofensível.
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