De John Waters a Don Mancini, de Ken Russell a Russ Meyer, uma característica que os diretores de clássicos cult (ao menos, os que atingem esse status e o transformam num ativo pessoal) costumam compartilhar entre si é um conhecimento enciclopédico do cinema. Faz sentido: para se emaranhar de forma tão profunda no discurso pop que os pilares da “qualidade” e do “apuro técnico” se tornam irrelevantes, é preciso conhecê-lo intimamente. E se Hypnotic: Ameaça Invisível tiver qualquer legado no grande esquema das coisas, talvez seja provar de vez que Robert Rodriguez pertence a esse grupo seleto de artistas.
É flagrante, especialmente na primeira metade do longa estrelado por Ben Affleck, como Rodriguez usa sua fluência na linguagem cinematográfica própria do gênero que está explorando (thrillers de ação policial dos anos 1990, especificamente) para atender e subverter, na medida certa, as expectativas estéticas e narrativas do público. Eis aqui mais uma história de um policial traumatizado em busca de respostas sobre o desaparecimento da filha, nos diz Rodriguez, enfileirando convenções na tela: a selva de concreto banhada de Sol que ele patrulha, a camaradagem genérica com os companheiros de trabalho, a estranha misteriosa (Alice Braga) que o coloca na pista de um novo mistério, e por aí vai.
Rodriguez, que também atua como diretor de fotografia ao lado de Pablo Berron (veterano do mundo dos videoclipes, tendo trabalhado com Lil Nas X, Harry Styles e Rosalía), filma tudo isso com uma piscadela autoconsciente tão sutil que pode passar despercebida - mas ela ainda está lá. Basta olhar para Affleck correndo de arma em riste na frente de murais de cerâmica intrincados, para a lente olho-de-peixe que Rodriguez aplica nos momentos em que a percepção do protagonista está sendo alterada pelo vilão com poderes psíquicos (William Fichtner), para as luzes coloridas que preenchem os espaços fechados onde as cenas de maior tensão da trama se desenrolam.
Enfim, este é o trabalho de um cineasta em pleno controle de seu meio, que escolhe trafegar nos mínimos denominadores comuns do gênero não só por nutrir óbvio respeito por eles como ferramentas, como também para atrair o público a uma zona de conforto na qual pode explorar ideias mais ousadas. Sem entrar demais no território dos spoilers, o terceiro ato de Hypnotic aplica uma reviravolta à trama que impulsiona Rodriguez na direção da metalinguagem ao comentar - de forma bem visual, inclusive - sobre a artificialidade inerente do cinema, especialmente dentro dos chavões que ele mesmo referenciou durante o restante do filme.
É uma manobra esperta, mas que também faz do longa uma experiência frustrante. Por sua própria estrutura e ambição, a trama de Hypnotic não oferece muito em termos de densidade temática ou dramática, mas por outro lado Rodriguez não parece querer que seu elenco, por exemplo, entregue performances paródia que se encaixariam dentro de sua brincadeira conceitual. Há um quê de cínico no sorrisinho convencido de Affleck durante o confronto final entre os mocinhos e bandidos do filme, algo de conscientemente falso em sua construção de policial atormentado, mas o restante do elenco (incluindo Alice Braga) não encontra espaço para virar a chave do constrangimento para a direção do camp.
Daí decorre ainda que o texto, coassinado por Rodriguez e Max Borenstein (cabeça da franquia MonsterVerse), exige um pouco demais da paciência do espectador. Com toneladas de diálogos expositivos, que buscam detalhar a mitologia fantasiosa que se revela aos poucos durante o filme (muitas vezes sem nenhum efeito prático na trama), o roteiro parece ser um daqueles que passa 90% do seu tempo se explicando, e mesmo assim não faz sentido nenhum. As viradas no último ato se empilham, mas o efeito cumulativo não faz nada para mitigar a fragilidade lógica e emocional de cada direção nova na qual o filme resolve caminhar.
Talvez, se Rodriguez tivesse escolhido abraçar a potência absurdista e psicodélica que a premissa de Hypnotic sugere, o resultado tivesse sido um filme que impressionasse mais no momento. Mas ele sabe o que está fazendo: como tantos outros títulos da sua filmografia, Hypnotic será eventualmente encontrado pelo público, e abraçado por sua familiaridade ligeiramente desajustada, sua inaptidão calculada e temperada com flashes de ousadia estética. E o amor encoberto de ironia que o filme parece desenhado para receber vai durar muito mais do que a apreciação crítica fugaz que seus colegas de gênero mais convencionais costumam atrair.
É um jogo longo, e poucos sabem jogá-lo tão bem quanto Robert Rodriguez.