Filmes

Crítica

Estrada para Perdição | Crítica

Pode parecer paradoxal, mas a HQ é mais movimentada do que o filme.

11.10.2002, às 00H00.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 13H13

Não é todo dia que apareceu uma história em quadrinhos como Estrada para Perdição. E também não é sempre que surge um filme como Estrada para Perdição (Road to Perdition, 2002).

Assim que folheou a HQ de Collins & Rayner, Steven Spielberg recomendou a leitura a Tom Hanks com um bilhete: Isso daria um bom filme. Como Spielberg se encontrava ocupado com outros projetos, o ator procurou o diretor britânico Sam Mendes para comandar uma adaptação. Depois de ganhar o Oscar em 2000 pelo retumbante Beleza americana (American beauty, 1999), o desafio de Mendes, oriundo do teatro, seria escapar da síndrome da estréia, aquela maldição paralisante que recai sobre alguns talentos promissores e bem-sucedidos. Pois Estrada para Perdição, com todo seu retrospecto, surgiu como um caminho perfeito e seguro.

Nos anos 1930, da Depressão, dos gângsteres e da Máfia, Michael Sullivan (Tom Hanks), um pai de família, matador temível conhecido como Anjo da Morte, serve o poderoso John Rooney (Paul Newman, assustador, cotado para o Oscar de coadjuvante), chefão irlandês ligado à Chicago de Al Capone. Acolhido por Rooney, Sullivan não questiona sua condição. Mas, um dia, durante um ajuste de contas, seu filho, Michael Jr. (Tyler Hoechlin, ótimo), testemunha uma execução. E a segurança de Sullivan e sua família entra em risco.

História adaptada

A adaptação do roteirista David Self é livre. Tanto o início da história quanto o desfecho foram alterados, em nome de certos laços mais emocionais. Nos quadrinhos, Collins, como bom escritor de histórias de mistério, se interessa pelo lado policial da questão, explica as influências da quadrilha do irlandês e, em seguida, disseca com documentos e investigações dos policiais federais a derrocada de Looney (nome original do mafioso, como mostra um texto complementar da edição).

No filme, toda a explicação inicial fica sintetizada numa passagem marcante, quando a família de Sullivan comparece ao enterro de um ex-comparsa de Rooney. Ali, no discurso de Finn McGovern (Ciarán Hinds, mais um ator notável em meio a tantos), poucas palavras evidenciam todo o poder do chefão. E a tônica fluente e discreta se torna a linha da narrativa.

Pode parecer paradoxal, mas a HQ é mais movimentada do que o filme. O roteirista Max Allan Collins busca balancear o traço denso e detalhista de Richard Piers Rayner com ação, tiroteios e perseguições. Uma vez que o filme adota uma postura mais reflexiva, sobre os laços de sangue e honra que ligam o universo do crime, é compreensiva a mudança: no papel, OSullivan abate aproximadamente quatorze homens para sair do escritório de Frank Nitti; na tela, Sullivan se esquiva e foge sem disparar um único tiro.

Todavia, não se trata de demérito. Nas abordagens escolhidas, tanto o original quanto a adaptação se saem bem. A HQ é memorável por tratar OSullivan como um Lobo Solitário claramente inspirado no mangá de Kazuo Koike e Goseki Kojima. E a melhor tirada do filme é colocar, como contraponto à aproximação entre Sullivan e Sullivan Jr., a relação conturbada entre John Rooney e seu filho Connor (Daniel Craig). Aliás, Connor representa, no filme, um personagem bem diferente do mero assassino da HQ. E o matador sinistro vivido por Jude Law, a síntese de todos os atiradores que forraram as páginas, também possui papel importante. Nos dois casos, as personagens deixam de ser meras coadjuvantes e ganham importância própria.

Vale ressaltar, também, a qualidade técnica e estética do filme. Maior do que a questão narrativa, o impacto visual criado pelo veterano diretor de fotografia Conrad L. Hall, vencedor do Oscar da categoria com Beleza Americana, cria seqüências de antologia, como o tiroteio na chuva. Mas nem tudo são flores. O maior problema de Estrada para Perdição são os seus rivais de comparação.

O gênero dos filmes de gângsteres sempre produziu obras-primas. E diante do drama vivido por Michael Corleone (Al Pacino) em O Poderoso Chefão (The Godfather, de Francis Ford Coppola, 1972), a perdição de Michael Sullivan não arrepia. Diante da intensidade da morte de Jim Malone (Sean Connery) em Os Intocáveis (The Untouchables, de Brian De Palma, 1987), a dramaticidade de Mendes soa apressada, como na conversa entre Rooney e Sullivan, antes do encontro final. Se um diretor se propõe a contar uma história épica sobre a Máfia, tal como Estrada para Perdição, deveria seguir exemplos como Era uma vez na América (Once upon a time in America, de Sergio Leone, 1984). Não se engane, Mendes merece vários Oscar (e provavelmente levará), mas não supera a narrativa dos mestres.

Nota do Crítico
Ótimo