No fim de Matrix (de Andy e Larry Wachowski, 1999) Neo (Keanu Reeves) consegue enxergar o verdadeiro mundo virtual - uma combinação esverdeada de complexos códigos binários -, derrota os inimigos em combate e finalmente liberta a sua mente de modo pleno. Mas quando discursa triunfante, "não estou aqui para dizer como tudo termina, mas como começa", o Predestinado sela não apenas a própria sorte, mas também o destino da obra como um todo.
O que era uma concisa e bem definida ficção científica se tornou uma avalanche. Números, especulações, tentáculos. Seria redundante repetir isso aqui, uma vez que a autopromoção silenciosa dos irmãos Wachowski funciona melhor, na persuasão e no convencimento, do que as engrenagens de uma matrix manipuladora. O que vale ressaltar é que a avalanche inicial transformou Matrix Reloaded (2003) em um dos filmes mais ambiciosos e esperados de que se tem notícia.
Assim, não há maneira de julgar o segundo episódio da trilogia, senão com uma rígida comparação em relação ao original. Você não verá aqui qualitativos do tipo "boa pedida para o sábado à noite". Os efeitos são um primor? Com certeza, de deixar mutantes no chinelo. As perseguições são as melhores já vistas? Sim, fenomenais. Os figurinos ditarão moda de novo? Provavelmente. Carrie-Anne Moss continua linda? Muito! As lutas são bacanas? Dignas de Bruce Lee. O aclamado "duelo de Neo X 100 Smiths" é antológico mesmo? Sem sombra de dúvida...
Mas a ambição de Reloaded exige uma análise mais criteriosa. Vamos a ela.
Plasticidade e limpidez
Na cabeça dos irmãos Wachowski e do produtor Joel Silver, uma continuação deveria ser, pela lógica digital, um upgrade. Efeitos potencializados, ação mais vertiginosa, pancadaria multiplicada, além de metáforas e simbolismos aprofundados. Acontece que o resultado não tem as arestas aparadas. Sobram excessos, dos mais variados. E como o filme original tem tudo no lugar, deduz-se: Reloaded não é tão bom quanto Matrix. Mas onde estão os exageros?
Primeiramente, deixa-se claro: o que faz de Matrix uma obra-prima não é o bullet-time, mas as insinuações filosóficas ligadas às questões do mundo cibernético. Não há avanço tecnológico que substitua uma história original e bem contada. George Lucas era a vanguarda dos efeitos em 1977, mas aqueles lasers coloridos só não são motivo de piada hoje porque o mito dos Jedis foi construído de maneira impecável. Alguém se lembra de O Passageiro do Futuro (The Lawnmower Man, de Brett Leonard), de 1992? Aquele "sexo virtual", exaltado na época, hoje é uma animação de quinta categoria.
E o primeiro pecado dos Wachowski é exatamente privilegiar o visual. Lembre-se do filme original. Os combates tinham uma certa razão de ser: ou faziam parte do aprendizado de Neo ou eram duelos mortais contra os agentes, vistos então como imbatíveis. Agora, como num legítimo filme de Kung-Fu, o herói luta de dez em dez minutos. Luta (longamente), sem maiores consequências, com um guardião da Oráculo, com os capangas de Merovingian, duas vezes com os Smiths. Oras, se ele é o Predestinado voador, que estremece a matrix e até ressuscita mortos, porque ainda precisa suar no embate corpo-a-corpo com mortais?
Felizmente, conta a favor de Reloaded o grande senso estético de Wachowskis e cia. Praticamente todas as cenas possuem algum elemento digitalizado, mas isso não transforma o filme num caleidoscópio rococó como a nova trilogia do deslumbrado George Lucas. Pelo contrário: aqui a plasticidade e a limpidez destacam as belas imagens. Estão todas no trailer, é verdade, mas não deixam de ser belas.
Filme pornô
Abordadas a estética e a sedução das Artes Marciais, vamos à intelectualidade, outro aspecto que sofre com os excessos. No primeiro filme, Morpheus era a voz da razão e pairava sobre os demais com os seus ensinamentos. Agora, todos os personagens têm algo "inteligente" a dizer sobre liberdade, fé, escolha, poder, livre-arbítrio, destino... A filosofia virou um fetiche. Obviamente, a redundância com que frases de efeito são engatilhadas (algumas são de fato bem elaboradas) causa um desgaste. Ou alguém acha que Morpheus tem um lampejo de genialidade quando diz, e Niobe repete: "Algumas coisas nunca mudam, outras mudam"?
Quer outro retrato dessa deturpação, a título de curiosidade? No primeiro filme os franceses apareciam na citação do pensador Jean Baudrillard, autor do ensaio Simulacro e Simulação. Em Reloaded, o povo francês é representado pelo desprezível escroque Merovingian - que inclusive faz questão de proferir uma irônica piadinha idiomática. Merovingian, aliás, também não dispensa um bom discurso. Em certos momentos, essa retórica toda tem um efeito maligno: faz com que Reloaded se comporte como um filme pornô. Ou seja, o espectador médio quer que o falatório raso acabe e venha logo a "ação".
Qual o efeito de mais esse exagero? O diálogo mais crucial da película, entre Neo e o Arquiteto, é tão hermético e rebuscado, passa tão ligeiro, que fica difícil acompanhar o raciocínio dos personagens.
Nem tudo é defeito, lógico. O lado religioso da teoria wachowskiana é bem acentuado. Morpheus é, mais do que nunca, o líder cego pela crença. Neo é, mais do que nunca, o ícone messiânico. E a sequência da festa regada a sensualidade e música eletrônica em Zion é emblemática. Não contrapõe apenas o afeto humano versus a frieza das máquinas. Sugere, também, que os desplugados se tornam alienados diante de uma voz de comando e respondem apenas aos desejos carnais inerentes à natureza humana. Existem na cidade-refúgio, inclusive, duelos de poder e ideológicos entre os comandantes de naves e conselheiros. Sob essa ótica, a rotina fora da Matrix se torna, por si só, potencialmente explosiva. Interessante...
Por fim, tomara que os (vários) nós sejam bem resolvidos no derradeiro Matrix Revolutions. Por enquanto, o resultado deixa sérios pontos-de-interrogação. Aos não-iniciados ficam os avisos de praxe. Tente assistir ao primeiro filme previamente, pois não há qualquer nota introdutória em Reloaded. E se você revoltou-se com a indefinição de O Senhor dos Anéis: As Duas Torres (Lord of the Rings: The Two Towers, de Peter Jackson, 2002), ou de qualquer outro "Episódio II", então cuidado... O "to be concluded" da trilogia Matrix é bem mais angustiante.