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Os britânicos Guy Ritchie, 36 anos, e Matthew Vaughn, 34, cresceram numa Inglaterra que assistia nas ruas à luta de classes. Mal saíam da infância quando, em 1979, o Tatcherismo começou a desarticular sindicatos, promover privatizações e dizimar o Estado de Bem-Estar Social. Os dois aprenderam rápido que qualquer agrupamento, sejam punks, skinheads, hooligans ou mineiros em greve, podiam pouco contra o monstro maior: o Sistema.
Ricos e pobres, aristocratas e fracassados não se misturam. No mundo do crime, funciona da mesma forma: chefões, intermediários, fornecedores e executores cuidam, cada um, dos seus negócios. Os dois filmes de gansgterismo de Ritchie - Jogos, trapaças e dois canos fumegantes (1998) e Snatch (2000) - anarquizam esse sistema. O magnata da jogatina morre na mão dos ciganos sujos, o matador russo bate cabeça com o agiota americano... Pode ser que o cineasta tenha criado esse painel caricato e circense inconscientemente, como resposta à Inglaterra rígida da sua adolescência. Mas o fato é que esse mundo é falso. O sistema não muda e os estratos não se misturam. E Vaughn sabe disso.
Depois de produzir todos os fimes de Ritchie, ele mostra sua versão desse universo na sua estréia como diretor, Nem tudo é o que parece (Layer cake, 2004). Aqui, age-se profissionalmente - ou, ao menos, é o que dizem os personagens. A começar pelo protagonista, vivido por Daniel Craig (Estrada para a perdição), que nunca revela seu nome e se diz um comerciante, não um traficante. Ele acredita que um dia os narcóticos serão legalizados. Até lá, tentará lucrar. A trama começa quando ele se diz satisfeito - e anuncia sua aposentadoria.
Claro que, como toda aposentadoria de cinema, ela será adiada. Antes, duas últimas incumbências: tentar achar a filha viciada e perdida de um magnata e distribuir um carregamento gigantesco de ecstasy vindo da Holanda. O "comerciante" não tem como recusar. No bolo de camadas do título original, ele é o doce-de-leite. Estacionou no nível dos intermediários de negociações - está em dívida com o chefão que sempre o prestigiou e sabe que a carga é mesmo valiosa. Mais uma vez ele terá que lidar com a escória dos fornecedores, um degrau abaixo do seu. E são justamente eles que o comprometem logo no início do filme.
Começa então sua descida ao inferno, que rola ao som de clássicos ingleses dos anos 70 e 80. The Cult, Duran Duran e Rolling Stones escoltam discussões, perseguições, baladas, reviravoltas, flertes, engambelações. A cada minuto o mundo ilícito de Nem tudo é o que parece rui diante das mentiras e das dissimulações. A única coisa que resiste é a divisão de classes, claro, porque só se ferra quem está embaixo.
Em alguns momentos o estilo do diretor lembra o de Ritchie - tomadas estilosas, frases de efeito, câmeras lentas, zooms rápidos, coadjuvantes caricatos e excêntricos. Isso prejudica seu enfoque realista do tráfico. Mas pode ser só incorreção de principiante. A boa notícia é que Vaughn não se perde. Predomina o seu domínio da história, especialmente no terceiro ato, o melhor do filme, mais introspectivo, que enfoca a desilusão ao mesmo tempo faustiana e dantesca (para usar duas citações do filme) do "comerciante".
Não foi por conflito geográfico e de agenda, como alegou há algumas semanas, que Matthew Vaughn deixou a direção de X-Men 3, às vésperas da filmagem. Agora fica evidente que ocorreram divergências criativas. O inglês parece ser do tipo que faz questão de plantar suas próprias idéias. Aliás, descendente longínquo do Rei George VI, para nos atermos à idéia de classes, tem propensão aristocrática a não seguir instruções. Ele sabe o que dizer - e, neste filme, principalmente, tem o que dizer.