Seria uma trilogia das enfermidades? Uma franquia bem-sucedida sobre disfunções? Uma saga sobre as chagas humanas? O diretor londrino Christopher Nolan deve ter escutado muitas dessas piadinhas quando anunciou seu novo projeto. Depois do perturbador Amnésia (Memento, 2000), Nolan decidiu que realizaria o remake de um filme norueguês, dirigido em 1997 por Erik Skjoldbærg, e chamado Insônia (Insomnia, 2002). Obviamente, o promissor diretor preserva ambições bem maiores do que meras brincadeiras temáticas. Primeiro, em sua estréia em circuitos mundiais, criou piruetas narrativas em uma história contada ao contrário, do fim ao começo. Agora, depois do sucesso súbito, volta a inventar - e amparado pelo gordo orçamento da Section Eight, produtora de Steven Soderbergh e George Clooney, e por Hilary Swank, Al Pacino e Robin Williams, três vencedores do Oscar. Na trama, Will Dormer (Pacino) e Hap Eckhart (Martin Donovan), dois policiais de Los Angeles, acusados de desvio de conduta, viajam até Nightmute, no Alasca, onde o assassinato brutal de uma adolescente desnorteia Ellie Burr (Hilary), a inexperiente delegada local. Em Nightmute, os dois tentam se esquecer das pressões da corregedoria de Los Angeles, mas se incomodam ainda mais com o fenômeno do Sol da Meia-Noite. No verão, a luz do dia dura, praticamente, 24 horas. Problemas à parte, os dois envolvem-se na busca do criminoso. Acidentalmente, porém, num momento da perseguição, Dormer provoca uma tragédia, se omite - e acaba chantageado pelo assassino (interpretado por Williams, coisa que o roteiro não faz questão de esconder). Para complicar, o dia quase eterno da região não lhe permite dormir. Análise Insônia guarda algumas semelhanças superficiais com Amnésia. Will Dormer parece-se com o Leonard Shelby vivido por Guy Pearce: são anti-heróis com contas a prestar, cheios de segredos, e que buscam uma certa redenção no exercício detetivesco. Shelby, no entanto, era, apesar do método das tatuagens e dos bilhetes, um frustrado que caía conscientemente num engodo. Dormer baseia sua atividade no pragmatismo objetivo, no melhor estilo o fim justifica os meios. E param aí as comparações. A desmemória era o cerne da linguagem do filme anterior. Aqui, a insônia serve mais como um agravante do desequilíbrio de Dormer. Quanto maior o sono e a claridade, menor seu poder de decisão e maior sua cegueira moral. Neste ponto, Amnésia é melhor, mas Insônia tem outros trunfos. O grande objetivo de Nolan é provar que inova e prende a atenção do espectador com narrativas lineares, sem efeitos especiais - mesmo que a tentação seja grande, como nos momentos de retratar o cansaço de Dormer. E, realmente, o diretor consegue inovar. Dentro de uma corrente conhecida como Pós-Noir, ou Noir Moderno, que inclui filmes singulares como Blade runner (de Ridley Scott, 1982) e Veludo azul (Blue velvet, de David Lynch, 1986), Nolan inverte as cores tradicionais do gênero: faz os antigos mistérios da noite acontecerem em plena luz do dia. E mantém os segredos da trama na escuridão psicológica dos personagens. Aliás, vale ressaltar o trabalho sóbrio do elenco. Pacino ruma a mais uma indicação ao Oscar, com seu retrato retumbante da fadiga física. Discreta, Hilary Swank destaca-se em um papel difícil. E Robin Williams encena, com seu antagonista, um duelo memorável. Sem o impressionismo dos seus papéis cômicos, consegue assustar com um simples olhar gelado. Esta faceta malvada de Williams, que se mostra um bom caminho ao desgastado ator, surge também no suspense Retratos de uma obsessão (One hour photo, 2002), de Mark Romanek, que estréia em 21 de agosto nos Estados Unidos e em 6 de outubro no Brasil.
Insônia Direção: Christopher Nolan |
Imagens © Warner Bros.