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O segredo de Vera Drake (2004), Leão de Ouro em Veneza em 2004 e indicado a três Oscar, pode até não ser o melhor filme do ano (chega muito perto), mas é certamente um dos mais intrigantes.
Antes, voltemos um pouco na filmografia recente do roteirista e diretor inglês Mike Leigh. Dois de seus dramas mais aplaudidos, Segredos e mentiras (1996) e Agora ou nunca (2002), possuem estrutura similar. Tratam de famílias afetadas por um certo descompasso social - sejam convenções morais ou problemas reais como alcoolismo e desemprego - que prejudica a sua convivência. A princípio só o espectador nota, já que os personagens se acostumaram à rotina. Mas a tragédia anunciada funciona como um infarto: uma hora as artérias, cada vez mais entupidas, vão arriar.
Os dois filmes têm finais iguais: a lavagem de suja roupa íntima serve como uma desobstrução vascular, um diagnóstico salvador no último momento. As famílias sobrevivem porque abrem corações, intimidades e confidências. O segredo de Vera Drake também é sobre uma intimidade escancarada, mas no sentido totalmente inverso. Mike Leigh não quer dar uma lição em seus personagens, mas na audiência. De curiosas testemunhas oculares viramos cúmplices.
O tal segredo do título não é segredo para nós. No dia-a-dia Vera (a excelente Imelda Staunton) é esposa dedicada, mãe de dois filhos, se empenha em casar logo a mais nova. Toda semana, porém, sai de casa escondida para realizar abortos em meninas desesperadas e mulheres descuidadas, muitas das quais não conseguem pagar uma clínica clandestina decente. Vera age de modo maternal mas não se abate. Está lá só para livrar a sujeita do inconveniente. Faz o serviço por caridade e não ganha dinheiro por isso.
Será só por caridade mesmo? A mocidade dela não nos é explicada, muito menos seu casamento precoce. Ao contrário de seus trabalhos anteriores, Leigh começa a negligenciar informação. Diante do espectador Vera Drake mantém a mesma postura fina, polida (e hermética) que conserva diante das visitas a quem serve chá. Ela É o segredo. Nós ficamos sabendo só um pouquinho além do que a família de Vera sabe. E a família não sabe nada.
Podemos até não perceber, mas por curiosidade - seja mórbida, seja natural, seja moral, seja científica - não vemos a hora dessa misteriosa benemerência ser desmascarada - e finalmente explicada. É com misto de terror e gozo que recebemos a notícia de que Vera foi descoberta pela polícia. E estamos na Inglaterra do pós-guerra, tempos conservadores e hipócritas. O destino dela não é dos mais ensolarados.
Aí o filme está só na metade. Leigh então dá o passo de mestre, a apunhalada fatal. "Miseráveis, queriam desvendar todo o mistério de Vera Drake? Pois agora aguentem!", é como se dissesse às nossas costas. Não vale contar o processo pelo qual ela passa, mas tem muito em comum com a crueldade de um Dançando no escuro (2000). A cada evidência apresentada no tribunal, em detalhes doídos, pausados, Vera parece se corroer por dentro, mas é para a platéia que o dedo é apontado de verdade.
Daria para criticar o filme pelo uso pouco humano que Leigh faz de sua personagem. Mas é justamente essa sua intenção: pegá-la como ferramenta, como marionete, para criticar a ânsia reveladora do melodrama, o apego que nós temos pelas vísceras abertas das pessoas. Apego esse, diga-se novamente, que o cineasta soube alimentar muito bem até hoje. Mas com O segredo de Vera Drake é diferente. No fundo Mike Leigh a expõe como mártir para defender o direito à privacidade.