Quando J-Hope lançou o seu álbum solo Jack in the Box, em julho do ano passado, este crítico que vos fala o classificou como uma obra “distintamente contemporânea”. Assistindo ao documentário J-Hope in the Box, que até faz raio-X dos estágios finais de produção do disco, mas se concentra principalmente na preparação e execução da performance do rapper sul-coreano no Lollapalooza 2022, em Chicago, essa qualidade corrente do trabalho de J-Hope fica ainda mais clara. Isso porque o principal sentimento genuíno que o filme encontra ao observar todo o caminho criativo do artista é um dos mais contemporâneos que se pode imaginar: a alienação.
Viver no planeta Terra nos últimos anos - ou, alguns diriam, décadas - é uma experiência alienante por definição. Não bastassem as interações humanas incompletas que nos acostumamos a ter com a mediação da tecnologia, ainda tivemos uma pandemia que nos obrigou ao isolamento físico, acelerando esse processo de despersonalização, midiatização, ficcionalização, que já estava em curso há muito tempo. Na arte não é diferente: a globalização cultural através da Internet pode significar que temos acesso a produções mais diversas e interessantes com facilidade, mas também pressupõe uma barreira de comunicação muitas vezes intransponível quando essa arte ultrapassa fronteiras geográficas.
É com essa barreira que J-Hope parece lidar durante toda a sua passagem por Chicago, que compõe quase 2/3 do documentário. Há quem vá dizer que o diretor Park Jun-soo, que trabalha com registros do BTS desde pelo menos 2018, quando assinou Burn the Stage: The Movie, estava apenas tentando fazer um registro engrandecedor da ética de trabalho do rapper ao registrar - e manter no corte final - os ensaios técnicos e preparações minuciosas para seu show no Lollapalooza. É de fato impressionante o nível de envolvimento do artista, que busca dirigir cada aspecto da performance, ditando por exemplo as cores que devem aparecer na tela em um momento específico para melhor “passar sua mensagem” ao público.
Como Homecoming fez para Beyoncé ou Halftime fez para Jennifer Lopez, In the Box mostra o controle obsessivo que o popstar em seu centro exerce sobre a própria imagem como um elemento empoderador de sua jornada. Se ele é quem está colocando isso à frente, se tudo o que vemos é escolha dele… bom, os padrões impossíveis de excelência aos quais ele está exposto são os dele, certo? O curioso é que, em In the Box, o diretor Park esbarra o tempo todo com uma verdade desconfortável: qualquer artista que busque tão obsessivamente o brilhantismo está fadado à solidão.
A escolha deliberada por mostrar esse isolamento de J-Hope é sentida nos takes demorados do rosto do artista durante ensaios nos quais ele não consegue dirigir diretamente os dançarinos e músicos não coreanos que foram contratados para acompanhá-los no Lollapalooza. Park mantém esses momentos em seu filme, a despeito da rápida 1h25 de metragem, porque entende que é ali que está o centro nervoso da história que está contando. Afinal, este é o registro da primeira grande investida solo de um artista conhecido por seu trabalho no maior grupo pop do planeta.
Enfatizar a singularidade de J-Hope como artista nesta nova fase seria uma prioridade para In the Box de qualquer forma, mas é curioso e comovente como o filme o faz através de uma lente francamente agridoce - e isso mesmo antes da seção ambientada em Chicago. Tornar-se “mais eu do que jamais pode ser”, como o próprio artista define perto do final do documentário, implica em horas isolado no estúdio, pouco tempo para visitar os pais, e toda uma performance de estreia (exaustivamente) dirigida por procuração, com o intermédio de tradutores e equipes inteiras que agem sem o acompanhamento direto do artista, e cujo trabalho ele precisa revisar e ajustar muito depois.
Na raiz de qualquer artista está a necessidade de se expressar, de se comunicar. In the Box reconhece tacitamente que este não é um caminho sem obstáculos, especialmente no mundo globalizado e alienante em que vivemos, mas também observa de forma bem direta e compassiva as formas que um homem encontrou para, se não superar, ao menos amaciar o impacto desses obstáculos. No coração de J-Hope in the Box, por baixo do (bem-vindo!) fan service e dos (nem tão bem-vindos!) efeitos de câmera curiosamente precários que marcam as cenas de show, mora um filme astuto e sincero sobre um sentimento de alienação que é tão particular quanto universal - como toda boa arte costuma ser.