Mad Max - Estrada da Fúria/Divulgação

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Mad Max - Estrada da Fúria | Crítica

George Miller volta ao western sadomasoquista mas sinaliza uma mudança de paradigmas

14.05.2015, às 13H19.
Atualizada em 28.05.2020, ÀS 16H17

Longe de ambicionar uma cronologia ou um estudo de personagem - embora tenhamos acompanhado um fim do mundo gradual com Mel Gibson por três filmes - os Mad Max constróem, acima de tudo, uma mitologia australiana a partir de subgêneros do faroeste. Não é diferente com Mad Max - Estrada da Fúria (Mad Max - Fury Road, 2015), a volta da franquia ao cinema depois de 30 anos.

O primeiro Mad Max, de 1979, ecoava Rastros de Ódio (1959) e outros westerns de vingança na trama do cavaleiro solitário que caçava os "índios" que dizimaram sua família. Dois anos depois, Mad Max 2 aderia ao subgênero da defesa do forte, com Gibson integrado a um grupo de colonos do futuro. Ao servir de gladiador de aluguel em Além da Cúpula do Trovão (1985), Max não se diferenciava muito dos pistoleiros como o Shane de Os Brutos Também Amam (1953), que se veem no meio de um confronto pelo controle de um oásis próspero no deserto.

Enquanto os temas que atravessam os faroestes americanos ecoam a busca de uma unidade para o país, nas suas jornadas de redenção e de construção de uma civilidade na Conquista do Oeste, porém, os filmes de Mad Max são absolutamente australianos no seu caráter de penitência. Ao criar uma mitologia que tem na estética sadomasoquista sua constante e na violência extremada o seu processo de purgação, George Miller se filia a uma tradição da literatura e do cinema australiano que se especializou em trazer para o Outback do século 20 - e para o futuro - todo o peso do passado desse país que foi concebido no século 18 como uma colônia penal do império britânico.

Na Austrália, todos são párias. Se Miller faz questão de enquadrar os quatro filmes de Mad Max no formato mais retangular do CinemaScope, para valorizar horizontes como em westerns clássicos, isso só faz de seus cenários arenas mais extensas para toda sorte de desajustados, deformados, sádicos e justiceiros. Em Estrada da Fúria, Miller organiza as gangues em estratos econômicos e sociais aparentemente mais complexos, combinando industrais e religiosos messiânicos numa harmonia possível no caos (o mundo certamente vai acabar antes do capitalismo), mas a grande magia de Mad Max é que a arena os iguala.

E dentro dela, nesta volta da franquia ao cinema, Miller não economiza na catarse. Se mesmo alguns dos seus filmes mais subestimados, como As Bruxas de Eastwick (1987), de alguma forma lidam com a purgação pelo castigo, é em Mad Max que o diretor coloca pra fora os seus demônios. Algumas cenas de perseguição de Estrada da Fúria levaram meses para filmar, depois de outros tantos meses de veículos sendo construídos nos sets na Austrália e na Namíbia, e essa obsessão se traduz gloriosamente na tela. O verdadeiro culto pagão de Mad Max, a fé nos automóveis (cujo simbolismo beira o óbvio em Estrada da Fúria, com o volante transformado em totem), chega ao espectador num misto de missa roqueira, exorcismo e bacanal.

Nem todos os veículos, porém, são pensados como extensões da iconografia sadomasoquista e feitos para penetrar uns aos outros em incontáveis colisões. Porque o subgênero de western eleito por Miller em Estrada da Fúria é o da travessia do comboio, e desde sempre as diligências trazem consigo uma noção de feminilidade. Quantos faroestes já não mostraram no passado carroças que transportam mulheres grávidas, entre famílias que são protegidas pelos homens solitários a cavalo? A diligência é a esperança em marcha, sintetizada na fertilidade da mulher, e dela irradia o senso de proteção da civilidade que marca esses faroestes. A ideia antropomórfica de o caminhão-pipa de Mad Max "dar leite" na sua torneira é a expressão máxima dessa representação.

Sob essa ótica, parece não só justo mas necessário que George Miller escolha uma mulher, Imperatriz Furiosa (Charlize Theron), como "mãe", dona do caminhão-pipa. No futuro será muito interessante formar sessões duplas entre Mad Max - Estrada da Fúria e faroestes de comboio que também efetivam um ponto de vista feminino, como o recente Dívida de Honra (2014), com Hilary Swank, e principalmente Meek's Cutoff (2010), a obra-prima de Kelly Reichardt estrelada por Michelle Williams. De resto, desconfie de quem acha que "falta roteiro" neste Mad Max; westerns de comboio são exatamente assim, enxutos e pautados pela ação, pelo menos desde 1939, ano de No Tempo das Diligências.

Mas que papel cabe ao Max de Tom Hardy nessa história, diminuído não só por Furiosa mas também pelo arco dramático de Nicholas Hoult? Não bastasse a responsabilidade de substituir o ator titular - e nessa hora fica muito latente como o carisma de Gibson sempre foi o motor do personagem - o Max de Estrada da Fúria ainda precisa lidar com o ocaso da sua masculinidade. No passado, John Wayne conseguia expressar muito bem a fragilidade de homens violentos que se percebiam deslocados num mundo em transformação. Com seu jeito de ator do método que nunca soube ouvir aquele famoso conselho de diretores impacientes ("apenas atue"), Hardy segue a receita desse tipo de papel monossilábico e introspectivo, mas ele não é Mel Gibson - nem John Wayne.

É curioso que, em entrevistas, George Miller associe Max a James Bond, para justificar a troca de atores. Seriam dois casos de personagens que, em nome de uma longevidade, sempre permanecem alheios ao mundo ao seu redor, capazes de sobreviver à base das suas manias, orbitando a ação, sem se afetar pelo contexto. Pois Estrada da Fúria - um filme cujo nervo não está na ação e sim numa mudança de paradigmas - atesta justamente a obsolescência do "caubói". Aquela comparação com Meek's Cutoff vem a calhar aqui porque é um filme muito forte sobre empoderamento feminino e transmissão de responsabilidade, e que torna evidente a incapacidade que George Miller tem de descartar seu mocinho sem de fato se despedir dele.

Nota do Crítico
Ótimo