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Crítica

The Many Saints of Newark estaciona no anedótico e na nostalgia de Sopranos

Prelúdio se oferece menos como filme que episódio de uma nova história

06.11.2021, às 12H02.

Revisitar Família Soprano como uma história de época e pelo olhar de uma criança, como o prelúdio The Many Saints of Newark propõe, parece uma maneira inteligente em 2021 de retratar o mundo dos adultos da série de TV, com sua rotina de violências e preconceitos. Com esse distanciamento - seja o do passado, seja o da inocência infantil - a caricatura dos mafiosos ítalo-americanos de Nova Jersey se ressalta, e aí pode-se até dizer que esses personagens têm sua toxicidade diluída.

De qualquer forma, essa caricatura hoje está mais do que consagrada no imaginário de uma geração que talvez não tenha visto Família Soprano na HBO em 1999 mas certamente passou por Jersey Shore uma década depois, e riu da caracterização dessa comunidade vizinha de Nova York, cafona, histriônica e cheia de excessos. Olhar para tudo isso com uma perspectiva crítica e satírica, no mais, sempre foi a fórmula de sucesso da criação de David Chase, porque a partir do momento em que Tony Soprano frequenta a psicanálise pela primeira vez, seu olhar sobre o mundo que o cerca se torna inevitavelmente contaminado pela autoconsciência. 

Assistir ao elenco de The Many Saints of Newark se esmerando nas imitações - especialmente John Magaro reproduzindo os tiques e as caretas de Steven Van Zandt como Silvio Dante - só faz atentar ainda mais para o anedótico. Como o filme já abre numa chave meio Brás Cubas, com uma panorâmica do cemitério e uma narração em off de Christopher do Além, relembrando para todo mundo como ele havia sido morto em Família Soprano, esse tom satírico é sublinhado desde o minuto um. Há uma mágoa na fala do narrador Christopher mas isso não se verifica na história que acompanhamos a seguir; aqui, a sátira serve menos a uma denúncia revisionista e mais a uma reminiscência agridoce de tempos ultrapassados e mais simples de entender.

Dois elementos são centrais para reconstruir esse imaginário com um véu de nostalgia e alento; o primeiro é a presença quase sobrenatural de Michael Gandolfini em cena. Nascido no ano em que seu finado pai estreou na televisão como Tony Soprano, Michael não precisa fazer esforços de imitação para nos relembrar de James Gandolfini, porque isso está impresso como DNA no seu rosto e nos seus gestos. Ver Michael encostando triste na cadeira da cozinha e limpando a boca do mesmíssimo jeito que Tony fazia é um assombro, é como assistir a uma expedição arqueológica que encontra em ruínas as evidências preservadas da nossa história.     

O segundo elemento é todo o trabalho de desenho de produção e cenografia, que do ponto de vista técnico é o principal trunfo que The Many Saints of Newark tem para tentar nos transportar para esse universo com imersão. Não se deve subestimar o impacto que é ver pela primeira vez em resolução 4K alguns cenários célebres da série, como a casa em que Tony cresceu. O filme começa muito bem porque parece ter consciência de que essa caracterização é fundamental para que a pequena crônica socioafetiva funcione. Se o mundo dos mafiosos é como um globo de neve - sendo Newark o território tomado onde toda a vida transcorre, do galpão para o Satriale’s, do açougue para casa, de casa para o bar, e no dia seguinte a mesma coisa repetida despreocupadamente - então faz todo o sentido que a mise-en-scène valorize demais esse arranjo de cenários, objetos, detalhes, cores, texturas. Não por acaso, personagens se tornam objetos de cena com frequência, como nas reuniões familiares cheias de parentes; a ideia é recompor uma memória, do jeito mais saturado possível, porque saturada é a própria nostalgia. 

The Many Saints of Newark começa a entrar em problemas quando precisa ir além da caracterização inicial, do tableau, e esboçar conflitos que conduzam a narrativa de fato. Essa dificuldade se apresenta, primeiro, porque ela pede que a caricatura se transforme em outra coisa, com mais solidez, e a direção de Alan Taylor não consegue injetar na dramaturgia do filme esse peso das causas e consequências, ainda que seja uma história sobre definição de destinos. Toda a trama de disputa de território entre os italianos e os negros estaciona na caracterização e nos xingamentos racistas que os dois lados trocam para se tipificar. Não há um crescendo mais firme de expectativa e suspense, e quando a trama se afunila parece inevitável sentir que as coisas acontecem de modo meio automático e até aleatório, só porque precisam acontecer para que essa história chegue ao fim.

A esses acontecimentos narrados de forma protocolar, o roteiro adiciona os momentos que se prestam a fan service, como ver o jovem Tony roubando o sorvete da vizinhança, ou vislumbrar questões futuras (como a preocupação com a saúde mental de Livia). Talvez fique com o espectador um sabor amargo, do meio para o fim do filme, porque todo aquele esforço de ambientação do início, que dava robustez à história, se dissipa em conclusões sem gravidade. Na verdade, as coisas resultam inconclusivas ou preparatórias, como se estivéssemos diante de um primeiro episódio de uma minissérie, e não de uma narrativa que se pretende fechada.

(Obviamente, The Many Saints of Newark pode dar origem a novas histórias, e as negociações atualmente entre David Chase e a HBO já denotam que muita coisa ficou no ar. Isso não exime o filme, porém, de ser mais comprometido com a história que escolheu contar, mesmo porque ela é feita de personagens de vida curta, marcada por choques definitivos.) 

Ao final, os melhores momentos do filme talvez sejam aqueles que têm caráter reflexivo, ou anedótico, sem obrigação com a exposição (que no mais Alan Taylor narra sem muita energia). Os encontros na cadeia estão entre esses momentos, e neles Ray Liotta brilha demais, tal ator que é, escorado na suprema gravidade que é retratar no cinema os tipos trágicos da Máfia. Está aí uma coisa típica de Sopranos: dois personagens frente a frente, trocando causos, conversando sobre vida e morte, azares e alegrias, porque afinal - é o que diz a psicanálise - na experiência com o outro nós nos entendemos como indivíduos. E, por um instante, o mundo parece maior do que simplesmente aquilo que as mãos tocam e os olhos alcançam.

Nota do Crítico
Regular