Filmes perfeitos não existem, e isso já é um clichê recorrente da crítica de cinema. O que se fala menos nesses círculos, no entanto, mas é igualmente verdadeiro, é que filmes muito próximos do perfeito são, na verdade, bastante chatos. É fácil de identificar quando uma obra foi objeto de obsessão do seu autor, quando ele foi consumido não só pela necessidade de realizar tudo milimetricamente como imaginou, mas também pela necessidade de controlar a forma como o produto de sua imaginação seria recebido. Estes filmes sempre resultam em experiências cansativas, de intensa negociação entre uma visão artística e as mil e uma “podagens” pelas quais ela passa para ser aceita como “grande obra”. Muitos desses filmes são ótimos, mas poucos são excitantes.
Megalopolis talvez não seja uma “grande obra”, mas certamente é um filme excitante. Chega a ser excitante, inclusive, a sua própria existência como produto, dentro de uma indústria dominada por interesses corporativos que cada vez mais se afastam do processo criativo. Que Francis Ford Coppola tenha sido capaz - depois de muitos anos e falsos começos, e tirando dinheiro do próprio bolso, claro - de criar um filme tão desavergonhado em sua autoralidade, tão inflexível em seu sentimentalismo de artista no terceiro ato da vida e da carreira, já familiarizado o bastante com as próprias obsessões para tirar sarro delas sem deixar de abraçá-las, é um pequeno milagre. Só Coppola poderia ter feito Megalopolis em 2024, e só o Coppola de 2024 poderia ter feito Megalopolis.
É difícil falar da trama do filme sem enveredar pelos detalhes da fantasia de grandeza do autor, mas aqui vai uma tentativa: Adam Driver interpreta Cesar, um arquiteto de ideias revolucionárias que quer construir a Megalopolis do título, uma cidade aperfeiçoada que viraria de cabeça para baixo a organização social contemporânea e permitiria o que ele vê como uma convivência em comunidade mais harmoniosa. Em seu caminho está o prefeito de Nova Roma, versão mitologizada de Nova York onde se passa a trama, vivido por Giancarlo Esposito; e a família de banqueiros trilhardários representada por Crassius (Jon Voight) e pela figura dúbia e andrógina de seu filho Clodio (Shia LaBeouf).
Enfim, se todo homem tem seu império romano, o de Coppola claramente é o próprio império romano. Megalopolis é cheio de paralelos difusos e inconsistentes, e o principal deles é o quanto o diretor e roteirista quer que conectemos a história da Roma antiga com a situação atual dos EUA, como maior força imperialista do planeta. Embora se localize firmemente em um universo de fantasia, com regras e tradições ricamente inventadas por Coppola, o filme também coloca Jon Voight para falar sobre “a queda da América”, e insere uma bandeira da Confederação (símbolo do lado perdedor - e escravocrata - da Guerra Civil Americana) no meio de um cenário de protesto. Megalopolis passa toda a sua metragem nesse vai-e-vem retórico entre alegoria e discurso direto.
É um exemplo fácil para ilustrar como o longa é indulgente ao ponto de não poder nem ser chamado de “uma destilação” da visão de Coppola. Não existe processo de refinação, de filtro, pela qual as ideias do diretor passem antes de chegar à tela: quando ele quer se espelhar no protagonista super-poderoso e virtuoso, capaz de mudar o mundo com suas ideias, Coppola logo o coloca para ter uma relação desconfortável com a mãe (como todo bom italiano) e uma colaboração criativa complexa com a esposa. A saber: Nathalie Emmanuel faz um trabalho de beleza e delicadeza inegáveis ao se aproximar dessa personagem que é um avatar de Eleanor Coppola, cineasta e braço direito de Francis, que faleceu este ano.
Até por sua falta de refinação, Megalopolis é antiquado de algumas formas que podem incomodar. Embora a construção do romance central seja tocante, em certa medida até filosófica (batizados de Julia e César, os personagens representam essencialmente como só um laço de amor entre duas pessoas pode completar nossas ambições mais idealistas como seres humanos), as mulheres de Coppola seguem confinadas a papéis de acessório à jornada dos homens, desenhadas em arquétipos de sedução, degradação, apoio ou rejeição. Já o personagem Clodio é construído com a codificação queer que se usava no passado para representar tudo que era sujo, impróprio, incômodo e lascivo.
Ao trafegar nessas e em outras caracterizações, Megalopolis se deixa escorregar para as implicações mais duvidosas de sua posição filosófica sobre o valor inestimável do artista que sonha com o futuro em nome de todo mundo que é incapaz de fazer o mesmo. Mas Coppola é, como todos nós, um ser humano paradoxal, e a utopia que ele revela no final do filme, após lançar mão de absolutamente todo tipo de recurso estético e narrativo para nos levar junto nesse delírio (do tipo que seria utilizado no mais baixo filme de gênero, à la Joel Schumacher, ao mais experimental cinema de prestígio, à la David Lynch), é uma utopia de convivência, fraternidade, celebração, em que a cafonice é só parte natural da comunhão entre pessoas.
Fincado firmemente nos conflitos do homem imperfeito, ultrapassado, egocêntrico e indulgente que o realizou, Megalopolis se torna um filme difícil de julgar - como (ao menos, quase) toda pessoa deveria ser, se fôssemos um pouco mais caridosos uns com os outros. É também um filme que merece que você lute com ele dentro de sua cabeça e de seu coração, e um filme com o qual sua cabeça e seu coração merecem ter a oportunidade de lutar. Dizer mais (ou menos) do que isso seria um desserviço a ele e a você.