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Assim como o revival musical dos anos 80 já começa a dar lugar à exumação dos 90, o cinema também deixa os sintetizadores e as ombreiras para visitar os excessos da década passada. É o Fim da História de Francis Fukuyama. É Nova York arrasada como colônia do HIV. E é a juventude de sempre, cada vez mais perdida.
São os meses de 1991 que servem de presságio do apocalipse para o diretor indie californiano Gregg Araki em Mistérios da carne (Mysterious skin, 2004). Não se trata, porém, de um apocalipse à Donnie Darko (2001) - ainda que a ficção científica de Richard Kelly seja imitada aqui a cada fotograma, especialmente em relação à estranheza do mundo - mas uma ruína menos metafísica e enrolada, mais ligada a culturas e comportamentos.
Dezoito anos recém-completos, Brian Lackey (Brady Corbet) decide que está na hora de interromper os pesadelos bizarros que o assolam. Há dez anos, ele passou por um trauma que apagou cinco horas de sua memória. O jovem suspeita que tenha sido abdução alienígena. A única saída é procurar quem presenciou o ocorrido ou se lembre do fato. E isso começa com a busca por um ex-amigo de primário.
Por sua vez, Neil McCormick (Joseph Gordon-Levitt, da sitcom 3rd rock from the Sun) evita falar de problemas do passado. O que lhe interessa é o presente - no caso, sair logo da interiorana Hutchinson, Kansas, onde Neil já cansou de ganhar felações e sodomizar os adultos enrustidos locais. Sua próxima parada é Nova York, bacanal onde seu tipo magro e bonitinho, quase andrógino, deve ser bem recebido.
Brian e Neil são tipos opostos. Ou melhor: caricaturas opostas. Brian incorpora o nerd mentalmente frágil e fisicamente débil. Nunca beijou uma garota, nunca transou, não bebe, não sai. Vive à sombra dessa paranóia da abdução - suspeita típica de nerd, claro. Já Neil não acredita em nada e experimenta de tudo, atitude clássica do jovem moderno-niilista que não tem a perder. Seu coração, porém, sofre por desilusões profundas, ainda que ele não demonstre. Neil é a espécie de bad boy que alopra moleques como Brian - mas a vida dos dois é mais ligada do que parece.
O diretor Araki era crítico musical da revista L.A. Weekly antes de se arriscar no cinema. Isso diz bastante tanto do seu talento para reconstituir a atmosfera noventista, trilha sonora inclusa, quanto da sua dificuldade em tornar críveis os dois protagonistas. Sem a direção devida, as atuações de Corbet e Gordon-Levitt rodam em falso.
Na balança, os defeitos do filme pesam, mas seu registro desesperançoso do legado recebido pela juventude da década se faz perceber. Araki é estilisticamente pouco criativo, sua tendência à vitimização dos personagens acaba diminuindo-os. Mais que isso, as revelações do desfecho já caducam na metade do filme. De qualquer forma, Mistérios da carne pode servir bem de metáfora sexual aos sintomas oitentistas de males que só são diagnosticados nos anos 90.