Na sua vida de cineasta independente, Rogério Sganzerla foi um saudável obsessivo. Um dos seus maiores alvos era o americano Orson Welles - particularmente sua passagem pelo Brasil em 1942, quando tentou filmar o documentário Its all true. O filme ficou só no ensaio, resultado do repentino boicote pelo Departamento de Imprensa e Propaganda do governo Vargas e pelos financiadores estadunidenses, e se perdeu sem nunca ser finalizado.
O episódio foi assunto de três filmes de Sganzerla - Nem tudo é verdade (1986), A linguagem de Orson Welles (1990) e Tudo é Brasil (1998) - e volta à tona agora. O signo do caos é o último filme do diretor brasileiro, morto em 2004, e finalmente chega às telas, depois de passar anos nos baús e viajar por festivais e retrospectivas desde 2003.
Its all true é, de certa forma, o grande personagem principal e metalingüístico de O signo dos caos. Ao confiscar os originais do filme wellesiano no cais do porto de um Rio de Janeiro perdido no tempo (mas presumivelmente do Estado Novo), agentes-capangas do DIP levam as latas ao chefe-censor, o Doutor Amnésio, vilão da história, responsável supremo pelo que sai ou não dos porões da censura para o mundo. Amo o que os outros detestam e odeio o que os outros apreciam, é o seu lema.
Dentro de uma sala de projeção, Amnésio julga o filme um perigo, por focalizar muito realisticamente a imagem do Brazil que o governo não quer exportar e ir contra os preceitos carolas da montagem cinematográfica. Ao seu lado, o jornalista Edmar Morel luta pela sobrevivência da película, personificando o bom-senso na eterna discussão com o censor. Se esse filme não serve pra ver, então também a vida não serve pra viver, filosofa.
Essa primeira parte dO signo foi filmada em preto e branco, película velha e suja como o cenário do debate, e contrasta com o segundo tempo do filme, em cores. Morel se reencontra com sua noiva no cais e os censores se reúnem em uma festa obscena, comemorando a vitória contra a livre expressão da arte, que já se encontra no meio do fogo ou no fundo do mar fluminense. Nada de final feliz por aqui.
Mas uma sinopse linear e simplória como essa é vergonhosa e injusta para descrever O signo do caos. O filme é isso, mas não é - ou pelo menos, não só. A crônica sobre o que aconteceu com o trabalho perdido de Welles nas mãos do governo brasileiro, apesar de traduzir mais uma vez a paixão de Sganzerla, é uma mera superficialidade para discussões maiores.
A fita é uma alegoria agressiva, escarrada pelo cineasta, sobre o estado de dormência permanente do cinema nacional. Classificado como o antifilme de Rogério Sganzerla, O signo do caos é o negativo do adorado superfilme nacional, o cinemão do Brasil-Hollywood que integra as eternas retomadas da nossa produção, sem grandes experimentações ou reviravoltas estéticas.
A censura praticada pelo governo evoluiu e agora é personificada pela indústria, é essa a conclusão que o diretor, que sempre se manteve (ou foi mantido) à margem das engrenagens, quer transmitir. Ele manda seu recado pela boca de seus personagens: hoje qualquer um faz filmes. Ou pensa que faz.
À parte a discussão, o cinema de Sganzerla está todo na tela em sua melhor forma, com o caos semi-ordenado que é sua marca desde O bandido da luz vermelha e A mulher de todos, seus primeiros longas. A montagem fragmentada do cineasta constrói a coerência a partir da incoerência, com fotogramas repetidos, som desencontrado com a imagem, a dublagem fora dos lábios dos personagens.
Referências visuais à obra de Orson Welles (como o amuleto de vidro de Charles Foster Kane, que vai parar nas mãos de Camila Pitanga, presença magistral como a dançarina Furacão de Santos) se misturam a outras influências-obsessões de Sganzerla, como James Joyce e os poetas concretos brasileiros, ao reaproveitamento de clichês nos diálogos e na atuação dos atores (como sempre, em simbiose com o diretor) e à presença debochada da canção Aquarela do Brasil.
Uma labirintite que, como quase nenhum filme nacional, serve para incomodar o espectador - e o capanga desdentado ri nervosa e continuamente da situação e da audiência.