Projeto Gemini/Divulgação

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Crítica

Projeto Gemini

Ang Lee leva seu experimento com a tecnologia ao ponto de ebulição

10.10.2019, às 17H58.

A primeira vez que Ang Lee tentou fazer um filme em 4K e 3D com uma taxa altíssima de quadros por segundo, A Longa Caminhada de Billy Lynn (2019), foi um grande mistério: só duas salas de cinema nos EUA estavam equipados para passá-lo. O fato de o drama de guerra não ter engajado o público nas suas cópias 2D contribuiu para que Billy Lynn tivesse impacto próximo de zero como evento tecnológico e cultural em 2016.

Eis que vem ao socorro de Lee o produtor Jerry Bruckheimer - que pode até não saber a diferença entre 24, 48, 60 ou 120 quadros por segundo mas entende de conceber filmes-eventos. Projeto Gemini é vendido como o futuro do cinema, embalado em especificações técnicas que ressaltam as filmagens em 120fps (nos cinemas o espectador encontrará o filme em sessões 4K 3D a 60 quadros por segundo, sob a nomenclatura "3D+"), mas o que deve fazer a diferença em termos de bilheteria, junto ao grande público, é a oportunidade de ver Will Smith em ação contra si mesmo, aos 50 anos e aos 20.

Nesse sentido Projeto Gemini talvez seja mais um filme de Bruckheimer do que de Lee porque é o cinema de atrações, afinal, que facilita a venda. Realmente enche os olhos a oportunidade de ver em cena mais um medalhão de Hollywood passar pelas cirurgias plásticas da computação gráfica de ponta, caminho que Tron - O Legado abriu e logo trará Robert De Niro e Al Pacino rejuvenescidos em O Irlandês. Em Projeto Gemini é o veterano pai de Jaden e Willow versus o jovem Fresh Prince que chama a atenção, antes de mais nada (mesmo porque a maioria dos cinemas continua desequipada para a experiência "completa").

Eu vi o filme em 4K 3D HFR (de "high frame rate"), a 60 quadros por segundo, o tal 3D+, que oferece uma experiência mais radical do que os 48fps de O Hobbit HFR. Para o olho humano - que enxerga imagens próximo dessa taxa na vida real mas está habituado aos 24 quadros por segundo usados no cinema desde sempre - qualquer índice acima dos 40 já deixa o cinema com uma impressão lavada e cristalina demais, semelhante ao que experimentamos na televisão ou nos games. A opção pelo 4K torna a nitidez ainda maior em Projeto Gemini.

A decisão é ousada porque Lee está abrindo mão de trucagens de nitidez e iluminação para esconder as imperfeições de seu jovem Will Smith digital. Ao escolher o "pacote completo" tecnológico, ele na verdade está se colocando na posição de expor tudo o que o personagem digital tem para mostrar, imperfeito ou não. Inclusive a filmagem em HFR exige que tudo seja mais iluminado em cena, e o 3D nativo ainda destaca os rostos nos close-ups. Não são apenas os atores "humanos" então que se veem sem maquiagem (outro truque que ficaria visível demais no HFR): os digitais também. Se a atração de Projeto Gemini é ver Will Smith - fitar Will Smith, dissecar Will Smith, ressignificar Will Smith - então temos aqui realmente um produto que entrega o que promete.

Queimando o véu

Existe, claro, toda a discussão em torno da taxa. Cinema é território de sonhos porque, entre outras coisas, o índice de 24 quadros por segundo oferece uma fruição de imagens suave como numa miragem de deserto, e se o HFR tem mais a ver com a estética das telenovelas é porque a taxa alta de frames desfaz na limpidez da imagem aquele caráter enevoado dos sonhos. O espectador vai encontrar em Projeto Gemini vários desafios à fruição (a começar pela forma como o 3D separa os corpos do pano de fundo; fica parecendo que voltamos àqueles games dos anos 90 com atores reais em fundos de CG, como Wing Commander 3), mas nenhum desafio se equipara a essa questão quase epistemológica de levantar ou não o véu dos sonhos.

É curioso que Ang Lee defenda a tecnologia porque, para ele, ela permite uma imersão maior do público. Na verdade a tendência é que o HFR torne o espectador consciencioso do processo. Ele assiste ao efeito e não "ao filme", e o olho humano fica o tempo todo tentando se ajustar à experiência disruptiva de estar vendo na sala de cinema uma imagem despertencida. Descobrir como são os atores sem maquiagem, outra decisão que desfaz a mística glamourizadora do cinema, é só o primeiro nível de "ruído", numa experiência toda fundada na disrupção. No cenário comparativo menos alarmista, Projeto Gemini se parece esteticamente com os filmes de ação europeus feitos para o mercado de streaming, nos quais a preocupação com a fotografia (na maioria das vezes límpida e desafetada) é orientada pela praticidade e não envolve os "véus" do cinema.

Comparar com o que é testado e comprovado, porém, talvez não esteja nos planos de Ang Lee e é totalmente legítimo - na verdade é até esperado de um artista que se questiona - que ele desbrave caminhos para propor uma nova relação com a imagem. Peter Jackson não entendeu isso. O Hobbit não funciona no high frame rate porque, primeiro, é um filme de fantasia que renega a natureza fantasiosa dos 24fps, e segundo porque Jackson não adaptou seu jeito de filmar às necessidades da nova tecnologia. Já Ang Lee faz em Projeto Gemini toda uma reestruturação estilística - da escolha dos movimentos de câmera à composição de informações no quadro.

O blockbuster existencialista

Dá pra criticar Ang Lee de várias frentes, mas não dá pra dizer que o cineasta seja oportunista. Ele não pega a nova tecnologia como um modismo, e sim entende que acolher o 4K 3D HFR implica repensar todo o modo de encenar. Por exemplo, o revés de filmar em 120fps - o diretor não pode fazer um sem-número de takes, porque o equipamento não consegue armazenar tanto material - é que cada plano precisa realmente ser pensado e repensado antes da filmagem, sem muita margem para planos de cobertura. Ironicamente, é como voltar a padrões que Hollywood abandonou há mais de meio século, quando seu modo de produção mais conciso se escorava mais no plano (que ângulo escolher, a que distância, com qual arranjo de corpos em cena) e menos na variedade de perspectivas filtradas posteriormente na montagem.

Como resultado prático, Projeto Gemini se destaca nas sequências de ação. Obrigado a ser muito econômico na captação, Lee e sua equipe coreografam atores, dublês e câmera com mais esmero do que se vê no blockbuster padrão hoje, e as perseguições e as lutas entre os dois Will Smith são o ponto alto do filme - pelo menos no sentido de uma experiência visual de multiplex, fluida e recompensadora. A câmera não se mexe loucamente sem critério porque, condicionado ao detalhismo do HFR, o movimento frenético poderia provocar enjôo ou pelo menos muita confusão visual. Lee se viu amarrado a uma exigência técnica e acabou fazendo um filme de ação com gestual de câmera ponderado e elegante.

Justiça seja feita: essa preocupação em reter a imagem, em planos mais longos do que nos habituamos ver em Hollywood, e não deixá-la se dissipar na velocidade do corte, é coisa presente em outros blockbusters do diretor (vem à memória o passeio de Hulk com seus saltos no deserto no filme de 2002, com seu balé de transições de quadro). Em Projeto Gemini, as perseguições ganham com os planos mais longos e com os movimentos de câmera mais suaves. Se a tecnologia não permite a imersão como a conhecemos, ao menos é hipnotizante. A cena do disparo contra o trem é emblemática. Lee usa lentes grandes-angulares para nos dar um senso de profundidade maior, e para fazer caber no enquadramento o máximo de informação visual (de novo, com detalhes cristalinos do 4K e do HFR) sem gestos desnecessários. O resultado nesses momentos é muito efetivo: uma cena que poderia parecer banal (todo matador do cinema se mostra sobrehumano no tiro de sniper) ganha demais em efeito, nas escolhas de câmera e na montagem precisa.

Dá para perceber o cuidado com o movimento em instantes os mais triviais; o esmero está na hora de mostrar o jato vindo em direção à câmera num plano longo, ou está no plano de contexto da base da Gemini (qualquer filme só mostraria a fachada do prédio, mas Lee faz todo um traveling para mostrar os arredores da base, que a ação sequer visita depois). Os blockbusters de Bruckheimer não vão ficar mais artísticos que isso. A cena do ataque terrorista ensaiado, que faz uma brincadeira de metalinguagem, parece até pueril e exibicionista depois de toda a demonstração do bailado de câmera de Lee. (Mesmo porque há outros momentos de metalinguagem, como o final da perseguição de moto, em que os personagens se espantam com a qualidade do clone mas na verdade estão espantados com a qualidade do boneco digital, extrafilme.)

É nos momentos de interação humana, porém, que as escolhas do diretor se mostram mais profundas. Porque há todo um teor existencialista na disputa entre o velho e sua versão jovem: Will Smith vê diante de si, um matador em vias de aposentadoria, a oportunidade de refazer seus erros do passado e trilhar uma vida toda nova. Só por isso - a premissa sci-fi que torna a questão da segunda chance um elemento absolutamente literal - Projeto Gemini já seria bem diferente do filme de assassino arrependido padrão. Mas ao adotar o 3D cristalino o cineasta traduz em imagem esse drama. Will Smith não está apenas encerrado em si mesmo porque o close-up do 3D aumenta sua cabeça, isola-o do cenário, destaca suas imperfeições faciais. Ele está sob o holofote e sob o microscópio porque afinal toda a jornada pessoal do personagem pede a ressignificação.

Então chegamos à constatação (talvez exagerada) que Projeto Gemini pode se provar um grande experimento existencialista, nos minimalismos que a tecnologia exige: movimentos mais pesarosos de câmera, quantidade mais econômica de informações visuais no quadro (é engraçado como não tem quase ninguém na paisagem, tudo parece cenário de paintball, o que é explicado no clímax espertamente quando um militar isola o perímetro da cidade). Por um momento vêm à lembrança filmes recentes de David Cronenberg como Mapas para as Estrelas e Cosmópolis, experimentos radicais de frontalidade com digital cristalino que isolam seus personagens no quadro para denotar seu despertencimento no mundo. O filme de Lee não está muito longe disso.

O que Projeto Gemini leva além é o caráter plástico, sem perder de vista que nasceu como blockbuster de ação. Will Smith está se sentindo um peixe fora d’água (ele não escolheria outra aposentadoria senão como pescador, isolado num oceano de azul falso), um adulto que jogou sua vida fora? Então Lee adota a artificialidade como projeto filosófico, para que refaçamos com Smith o nosso olhar. Tudo é estranho: a iluminação é forçada, as ruas e casas não têm uma tipicalidade clara. Seu filme vai na estranheza completa porque só pinçar um ou outro elemento de irrealidade seria uma solução pela metade. Projeto Gemini questiona toda a realidade em volta do seu herói: não é só ajustar o falso ao real (inserir o personagem digital num cenário "normal") e sim ajustar o real (profundidade de campo, borrões, locações reais) ao que é falso - e enfim trabalhar só com o falso, para eventualmente torná-lo verdadeiro.

Se o cinema em alta rotação acaba com o sonho, então, quem sabe, Ang Lee possa dar a volta inteira e refazer o sonho a partir do despertar.

Nota do Crítico
Ótimo